Empatia e Compaixão (Empathy and Compassion): o desafio linguístico de ressignificar bioeticamente a compaixão vale a pena?

As discussões, mesmo quando informais, do GBEM (nosso Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Bioética e Ética Médica) são sempre profícuas. Numa dessas conversas virtuais, durante a pandemia, o mote recaiu sobre a expressão “compaixão”, tradução do inglês “compassion” e discutida em interessante artigo de Harvard[1] que o grupo comentava e que trouxe à tona o questionamento sobre a vantagem ou não da adoção da expressão em nosso meio, como preferência a uma que ganhou espaço relevante nas temáticas bioéticas, qual seja: a empatia. Apenas resumo, por ora, um pouco do que a conversa evocou em minhas reflexões breves, acerca do desafio linguístico com que muitas vezes as questões bioéticas se deparam. O grupo pode não concordar.

No caso presente, a expressão “empatia” vem do grego empatheia, de en+pathos (em sentimento), passando pelo alemão Einfühlung (ein, dentro, e fühlung, sentimento). Atribui-se sua utilização contemporânea ao filósofo alemão Theodor Lipps, em finais do século XIX[2], fazendo contraponto à ideia de Mitfühlung (mit, com, e fühlen, sentir), utilizada por David Hume, ou simpatia (syn, junto, e páthos, sentimento), que reconhece o sentir alheio como e quando semelhante, sem se envolver profundamente com ele. A expressão ganhou utilidade também na psicanálise freudiana, em associação com a concepção de alteridade, como uma percepção do outro e preocupação com ele, identificando a peculiaridade do olhar alheio. Na dicção simples e profunda de Ana Cláudia Quintana Arantes[3], “empatia é a habilidade de se colocar no lugar do outro”, defendendo, todavia, a compaixão como mais transformadora, na mesma linha do texto que motivou a discussão.

De início, a proposta da compaixão como um passo adiante da já relativamente difundida ideia de empatia parece benfazeja: modo de ação que se soma à conexão. Nesse contexto, enquanto a empatia representaria uma ideia de compreensão fulcral do sofrimento alheio, para além da mera “pena” (“lamentar por”) ou simpatia, a compaixão, no geral, e a comunicação compassiva, no particular, implicariam uma disposição ativa de auxílio, como etapa subsequente e pragmática à compreensão. Tratar-se-ia de uma empatia ativa, que não se confunde com o outro nem se paralisa pelo sentimento partilhado. Segundo a já citada Ana Cláudia Arantes, “a empatia tem seu perigo; a compaixão, não”, pois não cega, permite ir em direção ao outro, sem olvidar-se de si, nem comprometer a própria noção de alter, outro, sem que o envolvimento introjete o sofrimento de forma excessiva, afetando a capacidade de ação.

Pessoalmente, contudo, confesso que ainda não me adaptei à preferência… A uma, por me parecer que a recomendação da distinção só se justifica se, de fato, passarmos a ver a empatia de forma eminentemente negativa, como uma identificação inerte ou inativada pela apropriação do sofrimento alheio. A duas, parece-me que a expressão “compaixão” tem uma conotação culturalmente um pouco diferente entre nós daquela lhe atribuída nos países anglo-saxônicos, e, com isso, parece-me mais difícil que “pegue” nos meios leigos e mesmo entre os técnicos. De efeito, veja-se o que se chama de “uso compassivo” de um fármaco, inclusive nos documentos do próprio Conselho Federal de Medicina, no sentido de uma tentativa sem comprovação de eficácia. Na linguagem comum também, a associação tradicional e religiosa de compaixão com piedade, misericórdia – “tende compaixão de nós e atendei as nossas súplicas” – importará, penso, uma resistência ou dificuldade a essa ressignificação. Talvez a ideia de “solidariedade” fosse mais bem adaptada em nossa língua para esse fim.

Minha dúvida é, portanto, e sobretudo, acerca da adesão cultural ao conceito proposto, o que temo o torne pouco útil ou só teorético. Estando ambas as interpretações na seara das convenções, de se questionar a conveniência da importação do sentido em nosso meio. Desconstruir-se-á a ideia grandiosa e bem recebida da empatia, sem que se coloque algo tão forte ou eficiente em seu lugar.

E a linguagem tem inegável peso, inclusive nas construções bioéticas. Veja-se, exempli gratia, o trabalho que se tem em corrigir a ideia pejorativa da paliação como somente residual. Será que criar um termo novo para a especialidade teria tornado mais fácil sua absorção social? Por outro lado, tem-se visto que a profusão de termos já per si não tão reconhecidos pela população pode gerar até mais confusão conceitual que esclarecimento. Assim se vê, por exemplo, na expressão kalotanásia, preferida por alguns em lugar da ortotanásia, quando sequer ainda incorporada e compreendida integralmente esta pela maior parte da população, e embora advirta a Profa. Maria do Céu Patrão Neves, que toda a “família” “tanásia” acaba, em algum momento, sujeita ao influxo da carga emotiva da original “eutanásia”, que também já foi apenas a “boa morte”, quando Francis Bacon a utilizou no século XVII, passando a assumir, na contemporaneidade, a ideia de morte provocada.

Na conhecida fala de Wittgenstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essas modificações espontâneas de sentido são frequentes no âmbito cultural, e nem sempre aceitam imposições etimológicas; a língua é viva, mas é dominada, sobretudo, pelo povo. Assiste-se a isso também em Ciência Política, em que várias expressões ganham vida própria, e se torna inócuo tentar alterar a conotação com que passam a ser difundidas na sociedade. Assim aconteceu com conceitos como “democracia”, “aristocracia”, “ditadura” e outros, que ganharam naturezas indissociavelmente positivas ou negativas, a despeito de suas significações originais.

Nesse aspecto, minha dúvida é se podemos (ou devemos) pleitear um inserir forçoso de um sentido diverso do que a sociedade já deu à compaixão, ou se é um trabalho ingente que poderia ser evitado pela mera escolha (ou ressignificação) de uma palavra não tão carregada de sentido prévio. Reconheço o uso internacional do termo. Mas uma tradução ou importação simples pode-se chocar com aspectos culturais arraigados, sobretudo considerando o peso religioso da expressão entre nós, o que a empatia não tem a combater.

Outra obra que trata do tema, cujo trecho foi discutido na ocasião[4], também não me esclareceu muito, ao reduzir a questão da empatia a quase que mera simpatia. Talvez essa necessidade de renovação vernacular se deva ao desgaste cada vez mais célere das palavras, quando caem no gosto do senso comum, ainda mais em tempos de mídias e redes sociais. E “empatia” foi uma delas. Mas, ainda assim, pareceu um certo desejo de chocar do autor dizer que é contra a empatia pois ela pioraria as pessoas, o que talvez remeta à visão de mundo anglo-saxônica, que, todavia, não encontra eco na visão latina, indigenista ou africana, de vocação mais coletiva. De fato, é insuficiente a só empatia sem ação. Também concordo que há imensos facilitadores à empatia quando nos identificamos com seu alvo, o que é um viés. Mas, ora, seu desafio está nisso mesmo: em desenvolvê-la, mesmo quando não tão óbvia ou natural, e transformá-la em ação – que seria o espaço da compassion para o autor, e cuja tradução literal, como referi, ainda não me convence muito como estratégia linguística. Mas ser contra o que eu chamaria de uma “empatia apática” ou meramente simpática não significa, penso, ser contra a empatia! Voltaire diria se tratar aí do clássico caso do “ótimo como inimigo do bom”… Empatia não pode implicar também ação? Não será mais fácil reconhecer-lhe essa noção proativa do que alterar a visão cultural da compaixão em nosso meio?

A construção da ideia de empatia foi um avanço teórico e prático importante na compreensão das relações de saúde contemporâneas, após a tecnicização marcante do século anterior; um passo adiante até na “regra de ouro” (tratar o outro como se quer ser tratado), ao reconhecer a particularidade da alteridade (“eu sou eu e minhas circunstâncias”, como dizia Ortega y Gasset). Desconstruí-la em prol de uma nova ideia de compaixão, sem a segurança de como essa expressão será incorporada, em face de seu sentido comum no país, pode ser contraproducente. Ou, em bom português, “um tiro no pé”…

Uma última palavra, em defesa da empatia: talvez precisemos mesmo ressignificar a compaixão, mas na linguagem comum antes. Na vida. Se formos ver, em que pese Rousseau[5] destaque a capacidade de compaixão como característica inata ao ser humano pré-civil, falta-nos, no convívio social pátrio, sequer manifestação adequada a exprimir tal sentimento, seja ele a compaixão ou a [solidária] empatia, sem que se nos assemelhe à famigerada “pena”, a um condescendente dó ou a uma piedade que parece diminuir o outro em seu sofrer. O que se diz para expressar a solidariedade no sofrimento? “Pobrezinho(a)” – que faz da carência econômica sinônima de todas as dores? “Coitado(a)” – palavra cuja origem já remete à de “vítima do coito”, que não deveria, per si, ser razão de lástima? O que ou como se diz de alguém que sofre, sem tornar esse sofrimento em si indício de vergonha e humilhação? Hoje muito se usa dizer que se prefere qualquer coisa a que se sinta pena de si. Ora, partilhar, sensibilizar-se com a pena (no sentido de infortúnio) do outro não deveria ser justamente a ideia que deu origem à em-pathos? Trocaríamos uma palavra promissora por outra que já precisa ser repensada até no uso comum, em lugar de resolvermos como utilizá-la de modo positivo? Será mesmo necessário? A questão é mudar a palavra ou efetivar a atitude? No fim, triste mesmo é sofrer sozinho.

 

Maria Elisa Villas-Bôas
Doutora em Direito Público, Professora Associada UFBA,
Defensora Pública Federal e Médica Pediatra

 

[1] HOUGAARD, Rasmus; CARTER, Jacqueline; AFTON, Marissa. Connect with Empathy, But Lead with Compassion. Disponível em  https://hbr.org/2021/12/connect-with-empathy-but-lead-with-compassion, acesso em 25.jan.2022.

[2] SIMONE, A. Sobre um conceito integral de empatia: intercâmbios entre filosofia, psicanálise e neuropsicologia. 2010. 180 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

[3] ARANTES, Ana Cláudia Quintana. Pra Vida toda valer a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2021, p. 56.

[4] BLOOM, Paul. Against Empathy: the case for rational compassion. Nova York: HarperCollins Publishers, 2016.

[5] ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre:L&PM,2012.

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