Um bom médico sabe o poder que detém

A ética médica, em seu efetivo exercício, pressupõe o respeito pela consciência moral dos sujeitos, agentes morais que são, reflexão esta que nos reporta à Sócrates. Isto é, ela deve considerar os sujeitos enquanto agentes de suas consciências e percepções éticas de suas condutas. Estarão atuando, nesta reflexão, o agente moral médico, e o agente moral paciente. E o que caracteriza este agente? A presença de um senso moral, que se perfaz no exercício de sua consciência livre. Entretanto, o fato é que, se de um lado há um agente, é bem possível que de outro haja um paciente, um ser passivo que, em situação oposta, não pratica um agir moral, ou a consciência de si.

Desloca-se a sua vontade, a sua liberdade, e a sua responsabilidade, e passa a contar com a passividade como um governado perante a atividade de um governante: o rei, o médico que, mesmo não fazendo uso de atavios, é capaz de expor o seu poder através da força no diálogo. Isto porque, analisando uma relação intersubjetiva extremamente comunicativa como é a relação entre médicos e pacientes – ou deve ser – é através do diálogo que se pode assistir à tirania da medicina que ainda considera o paciente passivo, não autônomo, não poderoso de si.

Sendo assim, para o exercício da autonomia em um campo em que o poder é o saber, é preciso conhecer para ser livre da ignorância, para se tornar também um poderoso de si perante o outro. E a liberdade, deste modo, se produz através da busca pelo conhecimento. Portanto, se pode consentir livremente a partir do momento em que se conhece sobre o quê se está a analisar. Porque sei, consinto ou não. Se não conheço, o que porventura concedo não é “consentimento”, é um erro viciado pelo não saber, pelo não exercício de minha liberdade e autonomia. O grande Cartola diria “Ai! se eu tivesse autonomia, Se eu pudesse gritaria, Não vou, não quero, Escravizaram assim um pobre coração, É necessário a nova abolição, Pra trazer de volta a minha liberdade”. Seria a necessidade da abolição ou supressão do poder-saber quando não partilhado, penso.

Para tanto, é preciso que o paciente, em seu papel de agente, seja capaz de discernir – na medida em que conseguir alcançar este papel – e tomando o discernimento como possibilidade de distinção entre o que são fins e meios, pessoas e coisas, dignidade e preço. A medicina tem o seu papel nesta realização da autonomia. E um bom médico, que conhece a técnica e a ética, conhece bem a distinção entre ética e etiqueta, e observa que não basta ser educado em boas relações sociais, é preciso realizar com profundidade o cuidado perante o agir moralmente correto com o outro, sobretudo tendo em vista o poder que sabe que detém.

Camila Vasconcelos
Advogada em Direito Médico, Professora da Faculdade de Medicina UFBA e
Doutora em Bioética pela Universidade de Brasília – UNB

 

Trecho do texto “Medicina, ética e humanismo”, originalmente publicado na Revista da Sociedade de Anestesiologia do Estado da Bahia em parceria com a COOPANEST-BA Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas Estado da Bahia.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *