Aula da Saudade – aos quase Deuses

Discursei em uma “Aula da Saudade”, para os quase médicos e médicas. Quase Deuses. Porém, humanos, e cheios de expectativas para suas formaturas. Continuavam dispostos a buscar conhecimento sempre que possível. Contudo, o “possível” para os socialmente endeusados transforma-se em “mais que possível”. Deuses não adoecem, não morrem. A finitude é humana. É ela a lembrança da vulnerabilidade. Vulnus: ferida.

Vulnerabilidade é a susceptibilidade de ser ferido. A medicina, como arte de cuidar, ou como ciência que pretende curar, deve “recordar-se” das condições de humanos de seus pacientes. E de seus médicos. Recordar, do latim “re-cordis”, significa voltar a passar pelo coração. Mas, Deuses têm corações? Como “re-cordar” sem possuir um coração? Culturalmente decidimos que o coração guardaria sentimentos. Assim, afirma-se que alguém sem coração não é capaz de sentir. Nem de “ressentir”, “tornar a sentir”. Nem de desenvolver “empatia”, que é a junção do prefixo “em”, que implica em proximidade, e “pathos”, “paixão” ou “padecimento”, o que implica em “imperfeição”.

Um dicionário traz “empatia” como “tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”. Sentir? Deuses têm coração? Deuses não têm a capacidade de experenciar a dor humana, porque não se “re-cordam” das dores. Eles não têm coração por onde voltarão a passar os sentimentos de dor ou alegria experenciados por humanos. Porque Deuses não precisam. São, pelos que neles creem, “per-feitos”. E a perfeição não é humana. Humanos é que são capazes de padecer, de apaixonarem-se, de sentir o sentimento do outro.

Empiricamente afirma-se que experiências são imperfeições do cotidiano, capazes de guiar condutas a novas vivências posteriores. Portanto, só possuem experiências os imperfeitos. Médicos são humanos? Ou perfeitos? Eis uma pergunta importante. Porque sem a respectiva resposta não há que se falar em humanização da prática médica. O fato é que um Deus que se propõe a tornar-se humano deve estar afeito a fazer-se finito, vulnerável, suscetível a ser ferido, possuir um coração, sentir, recordar experiências para desenvolver empatia.

Pacientes são humanos. Embora a ciência tenha reificado sujeitos, tornando-os “rés”, “coisas”, pacientes não são objetos. Têm nomes e são finitos. Morrem, e não é necessária a frustração diante desta constatação. É natural, tanto quanto a falibilidade da prática médica. Cuidar deles é essencial. Além do quê, eles têm corações e se re-cordam de tudo, inclusive dos erros dos quase Deuses.

Entretanto médicos são humanos, e necessitam dizer seus pensamentos, frustrações, êxitos… humanos têm estas vontades. Galeano, no “Livro dos Abraços”, ensina que “quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais”.

Futuros médicos: pacientes veem, em vocês, Deuses; vocês, futuros médicos e médicas, sugiro que se vejam humanos. E digam, verdadeiramente, que exercerão com amor e humanidade esta encantadora profissão. Se por motivo, social ou político, as suas vozes forem detidas: digam o que pensam, mesmo assim, mantendo respeito aos humanos. Mesmo que precisem dizer pelas mãos, pelos olhos, pelos poros… Porque todos temos algo a dizer, a sentir, a recordar, ou algo porquê lutar. Celebrem palavras que merecem ser celebradas. Ou perdoem, mas não por isso deixem de lutar contra o motivo pelo qual lhe negaram a boca. As minorias devem lutar; as maiorias devem tender a sentir o que se sentiria caso estivesse na situação ou circunstâncias experimentadas pelas minorias. E não percam tempo: segundo Sêneca, “enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas […] nos são alheias; só o tempo é nosso”. Agora é o tempo de vocês, homens e mulheres, quase Deuses. Apaixonem-se pelo futuro.

Camila Vasconcelos (Advogada em Direito Médico e Professora de Bioética FMB-UFBA)

*Texto originalmente publicado no Jornal Tribuna da Bahia, impresso, em 16 de novembro de 2017, pg. 11.

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