Objeção de Consciência do Médico e a Res. CFM nº 2.232/19

A objeção de consciência é um fenômeno recente, cuja origem remonta à Inglaterra, no ano de 1967, e aos Estados Unidos, em 1973, por ocasião da descriminalização do aborto. Nos dias de hoje, usualmente a objeção de consciência é utilizada em casos de aborto[1] e se encontra sob contestação em razão da sua incompatibilidade com o profissionalismo dos médicos. Em 2017, em artigo no Journal of Medical Ethics, Schuklenk and Smalling sustentam que não é plausível que profissionais, cuja escolha da profissão deu-se de forma voluntária, possam legalmente sustentar que não irão prover serviços abarcados pelo escopo da sua prática profissional, cuja provisão é socialmente esperada[2].

A objeção de consciência do profissional de Medicina ocorre quando um médico, resultante de conflito com suas crenças e valores pessoais, reconhece que não pode prover ou participar de tratamento ou procedimento considerado cientificamente apropriado sob a ótica dos padrões profissionais[3]. Sublinha-se que a recusa do médico de prover ou participar de um tratamento ou procedimento por questões médicas ou legais não constitui objeção de consciência[4].

As Diretrizes da Associação Médica Australiana estabelecem que a objeção de consciência apenas é caracterizada quando baseada em crença e valores sinceros e não em auto interesse ou discriminação[5].

O Conselho Geral de Medicina do Reino Unido fixa que o médico deve tratar seus pacientes com respeito e equidade a despeito das suas crenças e escolhas de vida. Ainda, o médico não deve expressar suas crenças pessoais (incluindo, crenças morais, religiosas ou políticas) para o paciente de modo a incrementar sua vulnerabilidade ou causar-lhe estresse[6].

Segundo o Conselho Geral de Medicina do Reino Unido, o médico pode optar por não prover determinado procedimento em razão de suas crenças e valores, na medida que não resultar, direta ou indiretamente, em discriminação ou danos a um paciente individual ou a um grupo de pacientes. Isso significa que o médico não pode deixar de tratar um paciente ou grupo de paciente em razão da suas crenças ou valores pessoais sobre tal paciente ou grupo[7].

Ademais, de acordo com o Conselho Geral de Medicina do Reino Unido, os pacientes têm direito à informação sobre as opções que existem para seu caso, e se o médico tiver objeção em relação a certo procedimento ou tratamento, deverá: a) ao informar ao paciente que não adotará o procedimento ou o tratamento, fazê-lo sem causar estresse ao paciente; b) não julgar a escolha do paciente; c) informar ao paciente que tem o direito de discutir sobre as opções existentes com outro médico (incluindo a opção que o médico rejeita).[8]

Importante pontuar que em nenhuma hipótese a objeção de consciência do médico pode implicar a imposição de tratamento ou procedimento ao paciente. A objeção consiste na recusa do médico de não prover tratamento ou procedimento, ou seja, significa uma abstenção por parte do profissional, sendo assim, descabe sob o argumento da objeção ter uma conduta positiva traduzida em tratamento forçado.

No Brasil, a Resolução nº 2.232, de 17 de julho de 2019, do Conselho Federal de Medicina – CFM, estabelece normas ética para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência da relação médico-paciente. A Resolução do CFM define a objeção de consciência como o “direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.

Primeiramente, cabe esclarecer que a objeção de consciência definida pela Resolução do CFM não se coaduna com os parâmetros internacionais, inclusive os de entidades médicas e da literatura científica. A objeção de consciência é a recusa por parte do médico de realizar procedimento ou tratamento em virtude de suas crenças e valores pessoais, logo, não é adequado defini-la com base na recusa do paciente. Nota-se que a definição do CFM objetivou contrapor a possibilidade do médico de não prover um cuidado com o direito do paciente de recusar. Com efeito, essa contraposição é equivocada, porquanto a objeção de consciência é usualmente empregada quando o paciente opta por um curso de ação e esse contraria as crenças e os valores pessoais do médico.

Igualmente, quando a Resolução conjuga a recusa do paciente e a objeção de consciência dá a entender de forma prejudicial para a harmonia da relação médico-paciente que qualquer recusa do paciente pode ser objetada pela mera alegação de objeção de consciência, o que não condiz com a sua natureza excepcional. Isso porque a objeção de consciência tem o condão de privilegiar injustamente a consciência do médico em detrimento da consciência do paciente. Ainda, a objeção de consciência em razão da restrição do direito do paciente ao cuidados em saúde e ao exercício da sua autodeterminação deve ser sempre interpretada restritivamente[9] e há que se impor limites explícitos e precisos para seu uso quotidiano na prática clínica[10].

A Resolução do CFM prevê que quando o médico opta por deixar de prover o cuidado em saúde com base na alegação de que está exercendo a objeção de consciência, deve comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde a fim de que outro profissional assegure o cuidado em saúde do paciente. Isso porque a objeção de consciência não se aplica quando o recusa do médico em cuidar do paciente poderá acarretar-lhe danos à sua saúde. Caso a objeção seja feita em consultório, o médico deve registrá-la no prontuário do paciente, o qual deve ser cientificado por escrito.

Considerando o texto da Resolução do CFM sobre objeção de consciência, pontua-se:

  1. A Resolução trata equivocadamente da objeção de consciência e do direito do paciente de recusar procedimentos e tratamentos como assuntos correlatos e necessariamente interligados.
  2. A Resolução não prevê salvaguardas para que o médico não cause estresse ao paciente ou aumente a sua vulnerabilidade quando fizer uso da objeção de consciência.
  3. A Resolução não trata do dever do médico de não discriminar o paciente por meio do uso da objeção de consciência, ou seja, o médico não pode deixar de tratar um paciente ou grupo de paciente em razão da suas crenças ou valores pessoais sobre tal paciente ou grupo.
  4. A Resolução não traz mecanismos de verificação da presença da crença ou valor pessoal genuíno de modo a assegurar a conduta profissional do médico.
  5. A Resolução não estabelece de forma explícita que a objeção de consciência não implica forçar o paciente a determinado tratamento ou procedimento.
  6. A Resolução não traz balizas para que a objeção de consciência seja adotada no caso concreto de forma excepcional na medida em que expressa o predomínio da perspectiva do médico sobre a do paciente.

 

Aline Albuquerque
Advogada da União, Pós-Doutora pela University of Essex, Inglaterra, e pela
Emory University, Estados Unidos e Professora Credenciada da Pós-Graduação em Bioética da UNB

 

 

[1] FIALA, Christian; ARTHUR, Joyce H. There is no defence for ‘Conscientious objection’ in reproductive healthcare. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/318647162_There_is_no_defense_for_’Conscientious_objection’_in_reproductive_health_care. Acesso em: 16 ago. 2019.

[2] Apud NEAL, Mary; FORVAGUE, Sara. Is conscientious objection incompatible with healthcare

professionalism? Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Mary_Neal2/publication/335127115_Is_conscientious_objection_incompatible_with_healthcare_professionalism/links/5d62417d458515d610228811/Is-conscientious-objection-incompatible-with-healthcare-professionalism.pdf. Acesso em: 16 set. 2016.

[3] AUSTRALIAN MEDICAL ASSOCIATION. Disponível em: https://ama.com.au/media/ama-updated-advice-doctors-conscientious-objections. Acesso em: 16 set. 2019.

[4] [4] AUSTRALIAN MEDICAL ASSOCIATION. Disponível em: https://ama.com.au/media/ama-updated-advice-doctors-conscientious-objections. Acesso em: 16 set. 2019.

[5] [5] AUSTRALIAN MEDICAL ASSOCIATION. Disponível em: https://ama.com.au/media/ama-updated-advice-doctors-conscientious-objections. Acesso em: 16 set. 2019.

[6] GENERAL MEDICAL COUNCIL. Disponível em: https://www.gmc-uk.org/ethical-guidance/ethical-guidance-for-doctors/personal-beliefs-and-medical-practice/personal-beliefs-and-medical-practice. Acesso em: 16 set. 2019.

[7] GENERAL MEDICAL COUNCIL. Disponível em: https://www.gmc-uk.org/ethical-guidance/ethical-guidance-for-doctors/personal-beliefs-and-medical-practice/personal-beliefs-and-medical-practice. Acesso em: 16 set. 2019.

[8] GENERAL MEDICAL COUNCIL. Disponível em: https://www.gmc-uk.org/ethical-guidance/ethical-guidance-for-doctors/personal-beliefs-and-medical-practice/personal-beliefs-and-medical-practice. Acesso em: 16 set. 2019.

[9] FIALA, Christian; ARTHUR, Joyce H. There is no defence for  ‘Conscientious objection’ in reproductive healthcare. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/318647162_There_is_no_defense_for_’Conscientious_objection’_in_reproductive_health_care. Acesso em: 16 ago. 2019.

[10] NEAL, Mary; FORVAGUE, Sara. Is conscientious objection incompatible with healthcare

professionalism? Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Mary_Neal2/publication/335127115_Is_conscientious_objection_incompatible_with_healthcare_professionalism/links/5d62417d458515d610228811/Is-conscientious-objection-incompatible-with-healthcare-professionalism.pdf. Acesso em: 16 set. 2016.

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