Vulnerabilidade, Médicos e Pandemia

Historicamente, a relação entre médicos e pacientes é estruturalmente assimétrica. O conhecimento científico é, sem sombra de dúvidas, o principal elemento capaz de evidenciar essa assimetria. A baliza de contorno da desigualdade revelada pelo potencial assimétrico é representada pelo reconhecimento da autonomia do paciente, na medida em que, ao longo dos anos, passou-se à construção de uma relação menos paternalista através da comunicação ética de informações e da necessidade de coleta adequada de consentimentos.

Há de se pensar, então, que hoje a concepção dessa relação, tradicionalmente posta como assimétrica, passa a apontar horizontes de emancipação do paciente. Essa realidade não é uniforme, tampouco se apresenta de maneira constante, considerando, por exemplo, realidades socioeconômicas distintas.

Mesmo numa relação constituída em contexto não pandêmico, deve-se ter em conta que podem existir também sobre o profissional da Medicina fundamentos que justifiquem condições de vulnerabilidade. É certo que o descortinar da pandemia, do quilate da que hoje vivenciamos, revela dimensões da relação médico-paciente, até então não afloradas e consequentemente despercebidas.

A primeira ideia é o pressuposto equivocado de que o médico, em seu saber científico, estaria imune às vulnerabilidades e teria, como obrigação, conceder respostas seguras em atendimento às demandas que surgem em decorrência da contaminação pela doença. A pandemia do COVID-19, além da evidência de um problema sanitário grave, é descortinadora de intensas categorias de vulnerabilidade, em especial, as sociais, as econômicas e as profissionais.

Vulnerabilidade é um conceito complexo que demanda profunda investigação. Enquanto perspectiva filosófica, é uma condição universal de todos os seres humanos. Somos, pois, todos vulneráveis simplesmente por existirmos. Conforme afirmam Peter Kemp e Jacob Rendforff[1], a universalidade desse estado tem como elemento central a finitude do ser humano, marcada pela sua mortalidade, pela sua potencial possibilidade de não mais existir. Nesse sentido, a vulnerabilidade é condição que torna todos os seres humanos iguais.

Por sermos uma espécie essencialmente subjetiva, necessitamos do olhar do Outro para ratificar a nossa própria humanidade. Desta forma, somos vulneráveis porque somos subjetivos. É exatamente deste ponto nevrálgico que parte a (re)construção da ideia de vulnerabilidade médica no contexto pandêmico: o reconhecimento pelo próprio paciente de que, diante de um cenário de múltiplas incertezas, o médico, assim como todos os seres humanos, é e se coloca a todo tempo em um papel que revela a sua condição de vulnerabilidade acrescida. A consciência de finitude e o reconhecimento desta por ambas as partes aproxima e tende a uniformizar de forma sutil e visceral a relação médico-paciente.

Reconhecer uma dimensão universal de vulnerabilidade à toda espécie humana não anula a necessidade de reconhecer, também, as suas dimensões específicas, que se concretizam a partir de aspectos econômicos, sociais, raciais, profissionais, dentre tantos outros. Assim, define Florência Luna[2] a necessidade de que a vulnerabilidade possa ser investigada a partir de camadas ou capas, o que leva em consideração, por exemplo, as circunstâncias em que os sujeitos sociais estão inseridos e a natureza das ações que praticam.

O cenário pandêmico modifica paradigmas tradicionalmente postos. A doença traz, consigo, o desconhecimento e a ausência de protocolos terapêuticos bem estabelecidos e de medicamentos comprovadamente eficazes. O conhecimento médico, essencial e fundamental à condução da relação, fragiliza-se pela surpresa. O elemento, então, que atestava a condição real da assimetria da relação, já não sobrevive da mesma forma, em especial, quando o médico está a tratar pacientes contaminados pelo vírus.

Vulneráveis são os médicos pela iminência da tomada de decisões referentes à uma doença desconhecida, vulneráveis são os demais profissionais da saúde, também expostos e exaustos pelo ritmo da rotina imposta pela pandemia, vulneráveis são os pacientes, em condições de comorbidades ou não, muitas vezes, sem acesso à saúde adequada, apavorados pela potencial possibilidade de evolução negativa do seu quadro clínico.

A potencialização das vulnerabilidades imposta pela pandemia afeta a pessoa em suas dimensões física e psíquica. O impacto na saúde física se manifesta através da exposição do corpo, estando todos os profissionais de saúde expostos à contaminação e submetidos às rotinas de trabalho que podem envolver situações extremas. O impacto na saúde psíquica é consequência de uma série de fatores que se aglutinam no intenso medo da contaminação (muitas vezes pela possibilidade da carência de equipamentos de proteção individual adequados e pela possibilidade de contaminar pessoas da família) e na vivência das histórias de dor relacionadas a cada paciente atendido. A alguns profissionais, as dificuldades impostas pelo vírus não bastam. O médico do Sistema Único de Saúde, notadamente, ainda vivencia em sua rotina os problemas decorrentes da escassez e da má distribuição geográfica de recursos humanos e tecnológicos, da insuficiência de leitos de enfermaria e de unidades de terapia intensiva.

O médico, hoje, no contexto pandêmico, é parte de uma realidade que também evidencia fragilidades reais. Assim, a Medicina, essencial à existência do ser humano, encontra empecilhos e exigências pandêmicas que devem ser observadas por apontarem condições de vulnerabilidade até então não nitidamente percebidas.

 

Ana Thereza Meirelles

Pós- Doutoranda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Relações Sociais e Novos Direitos pela Faculdade de Direito da UFBA. Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), do Mestrado da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora da Pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética da Faculdade Baiana de Direito. Líder do Grupo de Pesquisa JusBioMed – Direito, Bioética e Medicina.

José Edson Araújo Filho

Pós-Graduando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA).  Médico da Estratégia da Saúde da Família em Salvador. Salvador/BA, Brasil. Membro integrante do Grupo de Pesquisa JusBioMed – Direito, Bioética e Medicina.

Rafael Verdival

Mestrando em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UcSal). Pós-Graduado em Filosofia e Autoconhecimento: uso pessoal e profissional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro integrante do Grupo de Pesquisa JusBioMed – Direito, Bioética e Medicina.

 

[1] KEMP, Peter; RENDTORFF, Jacob Dahl. Princípio da vulnerabilidade. In: HOTTOIS, G; MISSA, Jean-Noel. Nova Enciclopédia da Bioética: medicina, ambiente, tecnologia. Tradução: Maria Carvalho. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 687-692.

[2] LUNA, Florencia. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas. Jurisprudencia Argentina, IV, fascículo Nº 1, 2008, p. 60-67.

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