Como tentar amenizar os efeitos das decisões de alocação e escassez, em tempos de pandemia?

Os números voltaram a subir, e a segunda onda da nova coronavirose no país torna a desafiar os piores medos de todos, rememorando o pânico desencadeado pelas primeiras notícias da Itália, em março de 2020, quando o tema da alocação de recursos escassos entrou perversamente na ordem do dia. A situação trouxe à tona, então, a discussão de valores éticos, técnicos e legais, que respaldassem uma tomada de decisão razoável entre os critérios possíveis para decidir a quem seria dada a chance de utilizar os recursos necessários para tentar vencer a morte por SARS-CoV.

Toda alocação não deixa de ser uma opção de ordem moral. Ela reflete escolhas sob o ponto de vista ético e axiológico, ainda quando se reveste dos critérios os mais técnicos possíveis. A ênfase técnica é, a propósito, também uma eleição valorativa, que tem por base um lastro filosófico outrossim, como o utilitarismo. Este, por seu turno, independentemente de quão polêmica seja a sua menção em relação à vida e saúde, é inafastável das decisões políticas, econômicas e sociais, que também precisam ser feitas atentando à efetividade e a um ideal de otimização e de não desperdício de recursos escassos.

O desafio maior é compatibilizar escolhas lógicas, racionais e pragmáticas com a preocupação também filosófica, kantiana, do valor intrínseco e da dignidade inata do ser humano como um fim em si mesmo. Mister buscar-se evitar, nessa linha, critérios aprioristicamente discriminatórios, dentro de um contexto de prevalências cultural, social e temporalmente condicionadas, contra o que adverte Rawls. O tema, naturalmente, comportaria laudas infindas de discussão, e não poucas já redigimos sobre ele e as angústias da tomada de decisões dessa ordem, quando de nossa tese de doutorado, no alvorecer das discussões sobre a judicialização das opções de alocação e saúde, outro aspecto per si delicado, sobretudo quando traveste de caráter individual decisões que afetam diretamente outro indivíduo.

Sinteticamente, contudo, como ora se propõe um texto de opinião, algumas sugestões poderiam ocorrer para a vertente mais polêmica e dolorosa: a alocação de leitos de UTI, decisão naturalmente mais dramática do que a hierarquia vacinal, aspecto que também diz com o atual tópico, mas que não implica a imediata e inexorável consequência de vida ou morte. De início, inegável a necessidade de definição prévia dos critérios, pela segurança, transparência e maior praticidade no uso emergencial, o que já foi constatado ao longo do último ano, e que precisa ser mantido atualizado, inclusive pelas mudanças decorrentes das variações do próprio vírus e evolução da doença.

Isso posto, elencando brevemente algumas considerações de base, no auxílio à análise da matéria, confecção e execução dos protocolos, sem detalhar a análise conceitual dos critérios, de que já tratamos em artigos científicos específicos, resumiríamos o brainstorm da seguinte forma:

1. Critérios de efetividade são, de efeito, mais razoáveis para otimizar recursos, sobretudo numa situação em que a indicação de intervenção precoce faz frente ao próprio critério da necessidade-gravidade.

2. Para tanto, de se formalizarem análises de efetividade calcadas em escores preditivos de prognóstico validados, sobretudo os de aplicação mais célere, como os utilizados em protocolos de atendimento emergencial a desastres com múltiplas vítimas, e com fulcro em condições clínicas atual e de base dos enfermos.

3. Pacientes terminais por outras causas já não tinham indicação de abordagem intensiva/invasiva, pelos princípios da beneficência e não maleficência e conforme a Resolução CFM n. 2156/16. Da mesma forma, pacientes que não respondam às medidas, tornando-se terminais em função do quadro atual, podem ter indicação de descontinuidade das medidas, nos termos das normas já vigentes, por análise dos mesmos princípios citados e independentemente de questões de alocação ou escassez.

4. Averiguar também a existência de eventuais recusas terapêuticas livres e esclarecidas, sob forma de manifestações atuais ou prévias e diretivas antecipadas de vontade, como prevê e recomenda a Resolução CFM n. 1995/12, dentro da esfera do princípio da autonomia.

5. Na eleição dos protocolos alocatícios, visa-se a evitar, em atenção ao princípio da justiça, critérios ad hoc e/ou aprioristicamente discriminatórios, inclusive restrições etárias estanques, calcadas em estimativas iniciais, gerais e isoladas de anos potencialmente salvos, num cenário de comprometimento maior da patologia justamente à população idosa. Tal critério pode-se revelar desproporcional, se adotado sem o cotejo com limitações de base relevantes e numa visão exclusivamente etarista.

6. Critérios de grau de necessidade social, que priorizam a análise pela atividade laboral/funcional (profissionais atuando na contenção da pandemia, por exemplo) ou de subsistência autônoma/dependência de assistência por terceiros, como sugerido em alguns protocolos, podem ser necessários em algum momento, mostrando-se mais razoáveis que a limitação etária avulsa, mas podem ser, no tocante ao grau de dependência, um viés de preconceito capacitista contra pessoas portadoras de deficiência. Outros âmbitos da necessidade pelo papel social abrangem a dependência econômica – condição de provedor – ou a detenção de filhos menores, que, todavia, não têm sido critérios utilizados com frequência, até pela maior dificuldade de apuração no contexto emergencial e pela subjetividade que podem albergar. Sua adoção como critério de desempate tem caráter também utilitário, com as vantagens e críticas que disso decorrem. Dentre os aspectos ora referidos, a priorização aos profissionais envolvidos no atendimento da pandemia se mostra melhor aceita, pragmática e socialmente, sendo, inclusive, previsão comum em ordens de alocação em tempos de guerra.

7. Dentre critérios últimos de desempate, a fila parece mostrar-se mais aceitável socialmente que a mera randomização por sorteioverbi gratia, que foi cogitada em alguns documentos e protocolos de alocação apresentados ao longo do último ano.

8. Soa consensual que as decisões de alocação não devem ficar a cargo da equipe de assistência, no momento do atendimento, evitando-se aumento do stress, sobrecarga emocional e esgotamento físico e psicológico (burnout) desta. Para sua elaboração, priorizar-se-iam comissões multidisciplinares com conhecimento também técnico e bioético, mediante protocolos prévios, se possível de caráter o mais amplo, transparente e uniforme possível, em lugar de normas individualizadas para cada unidade, o que gera maior insegurança à população assistida.

9. Mister atentar, investir, promover e insistir, ainda, na prevenção e no provimento de equipamento adequado, conscientização e seguimento do isolamento horizontal (inclusive pela pouca eficácia prática do isolamento vertical no convívio doméstico), para que se reduza o aporte da demanda tanto quanto viável, eis que mesmo medidas como a regulação unificada pode postergar ou minorar os momentos mais acerbos da escassez, mas provavelmente não evitará uma necessidade de alocação difícil, em caso de colapso geral.

10. Por fim, a despeito das reconhecidas dificuldades, necessário buscar viabilizar condições de assistência o melhor humanizadas possível, inclusive aos pacientes não elegíveis ou sem acesso ao tratamento intensivo. Em todas as circunstâncias, atentar aos cuidados paliativos e às comunicações de más notícias, da forma mais cuidadosa que se conseguir, dentro das contingências; à saúde física e mental das equipes e promover-se o direito de dizer adeus, ainda que mediante visitas virtuais, de sorte a se evitar ao máximo a dor da morte solitária e os traumas de um luto complicado.

 

Maria Elisa Villas-Bôas
Doutora em Direito Público, Professora Associada UFBA,
Defensora Pública Federal e Médica Pediatra

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