O senhor, entendeu, Seu José?

Era Seu José. Homem de boa-fé, da roça, da beira do rio quando a água vinha. Pensativo que só ele, desta vez catava o mato ali perto. Dona Maria espiava de longe, lavando a roupa no lajedo. Escumava com cuidado e força, com punhos cerrados, ritmados e, vez ou outra, parava com um bom e doce olhar para a alegria preocupada de seu menino velho. Aguaceiro bom o de dezembro, final de ano, e o de janeiro, começo de ano bom. Tinha água. A lida na roça ia bem. Eles, juntos, já haviam enfrentado muitas primaveras com e sem flores. Mas, na roça, tudo é bom. Até o calor debaixo do umbuzeiro.

O milharal apontava o verde, o cabelo do milho já estava ali e o maxixe já dava para colher. Que bom! A natureza trazia ternura e o bem-querer da capoeira colhida. Duro seria lembrar que iriam, no dia seguinte, visitar de novo o doutor. Não que não gostassem dele, homem bom, atencioso, que recebia Seu José na porta, com a mão estendida para um forte aperto, com palma disposta e punho firme. Sinal de respeito. Aperto de mão verdadeiro é assim: a mão toda cumprimenta. Mas seria o dia de saber o motivo daquela dor. Dor chata, “remosa”, insistente.

Dia seguinte, a roça amanheceu diferente. A natureza também havia se preocupado. Seu José mal tomou o café coado. “- Fica assim não, moço. Deus ajuda.” Ela também sentia o medo grande, mas seria capaz de rir o mais lindo riso, se preciso fosse. Em Seu José doía até o nó na garganta, que se escondida na firmeza do homem calado. Chegado ao doutor, a conversa se deu, o queixo tremeu e o braço apertou. Aquele braço que firmava a enxada, que, fazia tempo, danava a soltar “modi” a dor.

Descobrir o que se tem é bom, é o tal “diagnóstico”. Coisa dura de se ouvir, mas que, ao menos, mostra um porvir conhecido, um caminho que de longe se espia procurando a compreensão dos limites possíveis e impossíveis de aguentar. No entanto mais difícil, às vezes, é nada saber, embora já se possa sentir.

“- O senhor, entendeu, Seu José? O que eu disse?” Para um médico também não é fácil explicar a notícia difícil. Na faculdade o doutor de Seu José, jovem médico, havia aprendido, nas cadeiras de ética, que havia sim muita diferença entre informar e esclarecer. E sabia que se fazer entender era mais responsabilidade de sua fala do que da disponibilidade imediata de seu paciente de ouvir, sujeito vulnerável que só.

Sabia da importância de dar um tempo para o paciente “respirar” a difícil novidade. Sabia que precisava manter o paciente, inclusive, livre para sentir sua amargura e perguntar até o que pudesse parecer bobagem. Aprendeu que não há bobagens em dúvidas da vida. E que, para se fazer entender, sempre seria preciso esclarecer, o que fosse, com vocabulário pertinente ao contexto do sujeito. O contexto de Seu José era penoso, iletrado, de pouca instrução e muito coração. O rosto era talhado pelas linhas do sol da lida com a roça. A idade já não ajudava com as esperanças da vida.

Seu José precisaria, em algum momento, “operar”.  E, além da notícia, seria necessária destreza daquele doutor em iniciar o processo de consentimento que, ao final, poderia alcançar a formação de um Termo. E, para ser certinho e bem aplicado, teria que ser processual e verdadeiro, contemplando os passos, os riscos e benefícios. Ou, numa boa linguagem da região de Seu José, mostrando o que seria “arriscoso”, “sufrido” ou bom.

Terminada a consulta, Dona Maria, que havia estado a todo tempo atenta e solidária, agradeceu a afeição do bom doutor e segurou a mão de seu velho. Com doçura, a vida seguiu. “- Preocupa, não, moço. Nóis tá junto, o Dotô é com nóis e Deus é bom.” Com eles sempre será este médico atento, esclarecedor e amigo, cauteloso na comunicação com ética, empatia e doçura. Era Seu Doutor.

 

Camila Vasconcelos (Advogada em Direito Médico e Professora de Bioética FMB-UFBA)

*Texto originalmente publicado no Jornal Tribuna da Bahia, impresso, em 27 de novembro de 2018, pg. 11.

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