Foi um convite muito especial este de poder participar com vocês desta aula da saudade. Me senti lisonjeada, me senti querida, tanto quanto quero bem aos alunos que agora vejo, e com os quais rememoro os rostinhos do primeiro semestre do curso. É a beleza da docência: poder participar das alegrias daqueles que aprendem a aprender, cotidianamente. Ser “aluno” deve significar ser alguém disposto a buscar, por todo o tempo possível, o conhecimento. O “possível” para aqueles que são socialmente endeusados, torna-se necessário. É necessário, portanto, a busca insistente pelo saber. Isto porque, para aqueles que são socialmente endeusados – ou por eles -, é esperado mais do que humanos são capazes de entregar. Humanos têm condutas possíveis. Deuses têm condutas mais que possíveis. Deuses não adoecem. Deuses não morrem. Deuses não são finitos. A finitude é humana, é ela a lembrança da vulnerabilidade, que é condição de todo humano. Vulnus: ferida. É a susceptibilidade de ser ferido. Nós, humanos, nos assemelhamos, uns aos outros por meio desta mesma característica: a vulnerabilidade. É o medo da finitude por quem se sabe finito. Nos aproximamos em nossa condição de humanos pela consciência de nossa vulnerabilidade. Portanto é imprescindível, assim como a busca pelo conhecimento, a rotineira prática da lembrança da condição humana. A medicina, como arte de cuidar, ou como ciência que pretensiosamente pretende curar, deve recordar-se, a todo tempo, das condições de humanos de seus pacientes.
Recordar, do latim “re-cordis”, significa voltar a passar pelo coração[1]. Mas, perguntemo-nos: Deuses têm corações? Como recordar sem possuir um coração? Culturalmente decidimos, em um dado momento, que o coração teria a função de guardar sentimentos. Neste sentido, torna-se possível afirmar que alguém sem coração não é capaz de sentir. Assim pensamos. Nem de “ressentir”, de “tornar a sentir”, ou “ofender-se”[2]. Nem de desenvolver “empatia”, que é a junção do prefixo “em”, que implica em proximidade, e o “pathos”, palavra grega capaz de nos remeter à “paixão” ou ao “padecimento”, o que implica em “imperfeição”. Em um dos dicionários em que pude encontrar “empatia”, a compreensão foi a de “tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”[3]. E se nós, culturalmente, já decidimos que alguém sem coração não é capaz de sentir, é preciso, a quem pretende exercer a empatia, ter um coração. Deuses têm coração? Deuses têm empatia pelo outro, considerando este “outro” um sujeito cuja condição é humana? Deuses têm empatia por humanos? Deuses não têm a capacidade de experenciar a dor humana. Deuses não se recordam das dores. Eles não têm coração por onde voltará a passar os sentimentos de dor ou alegria experenciados por humanos. Porque Deuses não precisam. Deuses são, pelos que neles creem, “perfeitos”. E a perfeição não é humana. Humanos é que são capazes de padecer, de apaixonarem-se, de sentir o sentimento do outro, portanto, de desenvolver a empatia.
Empiricamente somos capazes de afirmar que, por diversas vezes, as experiências são imperfeições do cotidiano, capazes de guiar as condutas a novas e melhores experiências posteriores. Ouso dizer: só têm experiências os imperfeitos. E aqueles capazes de recordar experiências são os que têm corações, o órgão dos sentimentos. A empatia, que é a tendência para sentir o sentimento do outro, de colocar-se no lugar do outro, é humana. Médicos são humanos? Eis uma dúvida importante. Porque sem a respectiva resposta não há que se falar em humanização da prática médica. Então temos a certeza de que médicos são Deuses que carecem do aprendizado proveniente dos humanos para humanizarem-se? Para tornarem-se humanos? Talvez sim. É esta, mesmo, uma pergunta importante? O fato é que um Deus que se propõe tornar-se humano, por tudo o que vimos, deve estar afeito a fazer-se finito, vulnerável, suscetível a ser ferido, deve passar a possuir um coração e tornar-se capaz de sentir, de recordar experiências para então desenvolver empatia pelos seus pares, os outros humanos.
Pacientes são humanos. Embora certa feita a ciência tenha se disponibilizado a reificar sujeitos, portanto a torna-los “rés”, “coisas”, pacientes não são objetos, têm personalidades, têm nomes tal como humanos, que são reconhecidos por outros humanos. E são finitos: morrem. Pacientes morrem, não é necessária a frustração diante desta constatação. É natural, tanto quanto a falibilidade da prática médica. São vulneráveis, porque são susceptíveis a serem feridos. Cuidar deles é essencial. Além do quê, eles têm corações e se recordam de tudo: inclusive de seus erros… não errem. E vivem experiências de dor e de alegrias, sentimentos estes em relação aos quais encontrarão, em vocês, futuros médicos, a tendência a com eles estarem dispostos a sentir: esperarão desenvolver laços por empatia. Me pergunto: o que digo é verdadeiro? Não sabemos, até estarmos dispostos a confirmar ou infirmar. Afinal, não é assim a ciência? Lembram da necessidade pela busca do saber que move aqueles pelos quais se pretende crer que são Deuses? É esta necessidade, penso, a mesma capaz de mover a vontade da voz humana de dizer seus pensamentos, frustrações, êxitos… porque humanos têm estas vontades.
Vocês são humanos. Galeano, no “Livro dos Abraços”, mais precisamente no 2º texto sobre a celebração da voz humana, nos ensina que “quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais”[4]. Se estas palavras que eu disse não condizem com suas pretensões de ser humanos, perdão. Se condizem, celebremos, juntos, a felicidade que agora estou sentindo em ver estes queridos sujeitos, futuros médicos que continuarão a sentir-se humanos. Meus estimados alunos em relação aos quais desenvolvi uma imensa admiração desde a primeira vez, no primeiro semestre do curso, quando passamos a realizar, juntos, grandes debates sobre dilemas éticos. Penso que ali passamos a dançar, também juntos, a primeira valsa da empatia, ritmada como o coração que se recordará desta saudade. Observem: pacientes veem Deuses; vocês, futuros médicos, vejam-se humanos. E digam, verdadeiramente, que exercerão com amor e humanidade a mais encantadora das profissões.
E, se por algum motivo, social ou político, as suas vozes passarem a se encontrar detidas: digam o que pensam, mesmo assim. Mesmo que precisem dizer pelas mãos, pelos olhos, pelos poros, ou por onde for. Porque todos temos algo a dizer, a sentir, a recordar, ou algo porquê lutar. Celebrem palavras que merecem ser celebradas. Ou perdoem, mas não por isso deixem de lutar contra o motivo pelo qual lhe negaram a boca. As minorias devem lutar; as maiorias devem, até mesmo por empatia, ao menos tender a sentir o que se sentiria caso estivesse na situação ou circunstâncias experimentadas pelas minorias. E não percam tempo: segundo Sêneca, “enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas […] nos são alheias; só o tempo é nosso”[5]. Agora é o tempo de vocês. “Apaixonem-se pelo futuro”, queridos e futuros médicos.
Saudades de vocês.
Camila Vasconcelos
(Professora de Bioética DMPS-FMB-UFBA e Advogada em Direito Médico)
[1] Galeano E. O livro dos abraços. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 11.
[2] “Ressentir”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/ressentir [consultado em 05-09-2016].
[3] Cunha AG. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª ed.
[4] Galeano E. O livro dos abraços. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 23.
[5] Sêneca (ca.4 a.C. – ca. 65 d.C.). Aprendendo a viver. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 15.
*Versão adaptada foi publicada no Jornal Tribuna da Bahia, Salvador, Bahia, impresso, p. 10 – 10, em 16 nov. 2017, com o título “Aula da Saudade – aos quase Deuses”.