Aula da Saudade: Medicina, UFBA, 2016

Foi um convite muito especial este de poder participar com vocês desta aula da saudade. Me senti lisonjeada, me senti querida, tanto quanto quero bem aos alunos que agora vejo, e com os quais rememoro os rostinhos do primeiro semestre do curso. É a beleza da docência: poder participar das alegrias daqueles que aprendem a aprender, cotidianamente. Ser “aluno” deve significar ser alguém disposto a buscar, por todo o tempo possível, o conhecimento. O “possível” para aqueles que são socialmente endeusados, torna-se necessário. É necessário, portanto, a busca insistente pelo saber. Isto porque, para aqueles que são socialmente endeusados – ou por eles -, é esperado mais do que humanos são capazes de entregar. Humanos têm condutas possíveis. Deuses têm condutas mais que possíveis. Deuses não adoecem. Deuses não morrem. Deuses não são finitos. A finitude é humana, é ela a lembrança da vulnerabilidade, que é condição de todo humano. Vulnus: ferida. É a susceptibilidade de ser ferido. Nós, humanos, nos assemelhamos, uns aos outros por meio desta mesma característica: a vulnerabilidade. É o medo da finitude por quem se sabe finito. Nos aproximamos em nossa condição de humanos pela consciência de nossa vulnerabilidade. Portanto é imprescindível, assim como a busca pelo conhecimento, a rotineira prática da lembrança da condição humana. A medicina, como arte de cuidar, ou como ciência que pretensiosamente pretende curar, deve recordar-se, a todo tempo, das condições de humanos de seus pacientes.

Recordar, do latim “re-cordis”, significa voltar a passar pelo coração[1]. Mas, perguntemo-nos: Deuses têm corações? Como recordar sem possuir um coração? Culturalmente decidimos, em um dado momento, que o coração teria a função de guardar sentimentos. Neste sentido, torna-se possível afirmar que alguém sem coração não é capaz de sentir. Assim pensamos. Nem de “ressentir”, de “tornar a sentir”, ou “ofender-se”[2]. Nem de desenvolver “empatia”, que é a junção do prefixo “em”, que implica em proximidade, e o “pathos”, palavra grega capaz de nos remeter à “paixão” ou ao “padecimento”, o que implica em “imperfeição”. Em um dos dicionários em que pude encontrar “empatia”, a compreensão foi a de “tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”[3]. E se nós, culturalmente, já decidimos que alguém sem coração não é capaz de sentir, é preciso, a quem pretende exercer a empatia, ter um coração. Deuses têm coração? Deuses têm empatia pelo outro, considerando este “outro” um sujeito cuja condição é humana? Deuses têm empatia por humanos? Deuses não têm a capacidade de experenciar a dor humana. Deuses não se recordam das dores. Eles não têm coração por onde voltará a passar os sentimentos de dor ou alegria experenciados por humanos. Porque Deuses não precisam. Deuses são, pelos que neles creem, “perfeitos”. E a perfeição não é humana. Humanos é que são capazes de padecer, de apaixonarem-se, de sentir o sentimento do outro, portanto, de desenvolver a empatia.

Empiricamente somos capazes de afirmar que, por diversas vezes, as experiências são imperfeições do cotidiano, capazes de guiar as condutas a novas e melhores experiências posteriores. Ouso dizer: só têm experiências os imperfeitos. E aqueles capazes de recordar experiências são os que têm corações, o órgão dos sentimentos. A empatia, que é a tendência para sentir o sentimento do outro, de colocar-se no lugar do outro, é humana. Médicos são humanos? Eis uma dúvida importante. Porque sem a respectiva resposta não há que se falar em humanização da prática médica. Então temos a certeza de que médicos são Deuses que carecem do aprendizado proveniente dos humanos para humanizarem-se? Para tornarem-se humanos? Talvez sim. É esta, mesmo, uma pergunta importante? O fato é que um Deus que se propõe tornar-se humano, por tudo o que vimos, deve estar afeito a fazer-se finito, vulnerável, suscetível a ser ferido, deve passar a possuir um coração e tornar-se capaz de sentir, de recordar experiências para então desenvolver empatia pelos seus pares, os outros humanos.

Pacientes são humanos. Embora certa feita a ciência tenha se disponibilizado a reificar sujeitos, portanto a torna-los “rés”, “coisas”, pacientes não são objetos, têm personalidades, têm nomes tal como humanos, que são reconhecidos por outros humanos. E são finitos: morrem. Pacientes morrem, não é necessária a frustração diante desta constatação. É natural, tanto quanto a falibilidade da prática médica. São vulneráveis, porque são susceptíveis a serem feridos. Cuidar deles é essencial. Além do quê, eles têm corações e se recordam de tudo: inclusive de seus erros… não errem. E vivem experiências de dor e de alegrias, sentimentos estes em relação aos quais encontrarão, em vocês, futuros médicos, a tendência a com eles estarem dispostos a sentir: esperarão desenvolver laços por empatia. Me pergunto: o que digo é verdadeiro? Não sabemos, até estarmos dispostos a confirmar ou infirmar. Afinal, não é assim a ciência? Lembram da necessidade pela busca do saber que move aqueles pelos quais se pretende crer que são Deuses? É esta necessidade, penso, a mesma capaz de mover a vontade da voz humana de dizer seus pensamentos, frustrações, êxitos… porque humanos têm estas vontades.

Vocês são humanos. Galeano, no “Livro dos Abraços”, mais precisamente no 2º texto sobre a celebração da voz humana, nos ensina que “quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais”[4]. Se estas palavras que eu disse não condizem com suas pretensões de ser humanos, perdão. Se condizem, celebremos, juntos, a felicidade que agora estou sentindo em ver estes queridos sujeitos, futuros médicos que continuarão a sentir-se humanos. Meus estimados alunos em relação aos quais desenvolvi uma imensa admiração desde a primeira vez, no primeiro semestre do curso, quando passamos a realizar, juntos, grandes debates sobre dilemas éticos. Penso que ali passamos a dançar, também juntos, a primeira valsa da empatia, ritmada como o coração que se recordará desta saudade. Observem: pacientes veem Deuses; vocês, futuros médicos, vejam-se humanos. E digam, verdadeiramente, que exercerão com amor e humanidade a mais encantadora das profissões.

E, se por algum motivo, social ou político, as suas vozes passarem a se encontrar detidas: digam o que pensam, mesmo assim. Mesmo que precisem dizer pelas mãos, pelos olhos, pelos poros, ou por onde for. Porque todos temos algo a dizer, a sentir, a recordar, ou algo porquê lutar. Celebrem palavras que merecem ser celebradas. Ou perdoem, mas não por isso deixem de lutar contra o motivo pelo qual lhe negaram a boca. As minorias devem lutar; as maiorias devem, até mesmo por empatia, ao menos tender a sentir o que se sentiria caso estivesse na situação ou circunstâncias experimentadas pelas minorias. E não percam tempo: segundo Sêneca, “enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas […] nos são alheias; só o tempo é nosso”[5]. Agora é o tempo de vocês. “Apaixonem-se pelo futuro”, queridos e futuros médicos.

Saudades de vocês.

Camila Vasconcelos
(Professora de Bioética DMPS-FMB-UFBA e Advogada em Direito Médico)

 

 

[1] Galeano E. O livro dos abraços. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 11.

[2] “Ressentir”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/ressentir [consultado em 05-09-2016].

[3] Cunha AG. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª ed.

[4] Galeano E. O livro dos abraços. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 23.

[5] Sêneca (ca.4 a.C. – ca. 65 d.C.). Aprendendo a viver. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 15.

*Versão adaptada foi publicada no Jornal Tribuna da Bahia, Salvador, Bahia, impresso, p. 10 – 10, em 16 nov. 2017, com o título “Aula da Saudade – aos quase Deuses”.

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