Doutor, o que ele tem?

Era noitinha e aquela senhora, que muito pouco entendia, buscava respostas para além de toda a possível explicação que a medicina dispunha. O diagnóstico era conhecido, embora cada sintoma, cada dorzinha parecia não ter um porquê.

Os olhos se fecham ao que não se consegue ver, a compreensão se esvai e os ouvidos não entendem. A dor magoa. E parece que o anoitecer, o cair da tarde, aquela horinha que nem noite nem dia é apertava um pouco mais aqueles dois corações. O dele, ao ver sua querida tão preocupada fazendo-se inconsciente de todo o contexto que já se mostrava claro. O dela… Há quem diga ser a horinha da saudade, da falta que se sente sem se saber do quê, a ausência do dia que traz a clareza do sol, que não se acaba.

No hospital a janela grande ao lado do leito trazia o céu azul de dia, e anunciava a hora do nada, ao anoitecer. Aos médicos não parecia fácil assistir ao ritual de término de uma companhia que havia durado toda uma vida. Um ritual de buscas. A medicina, por vezes, é o maior dos afagos na alma. E nem sequer um bisturi se faz necessário.

A medicina tecnicista, cientificista se vê solitária, sobretudo nestes momentos, quando não encontra sua personalidade maior, sua doçura, a medicina humanística. O entender de gentes, o compreender do acalanto dos cuidados, o fazer-se presente no término das vidas também é medicina. Eles deveriam ter, cada qual, por volta de oitenta e poucos anos. E ainda teriam mais alguns, juntos, não fosse aquela doença a atrapalhar o dia. E, agora, a noitinha também.

Lá na roça o doce anoitecer é a hora do recolhimento para o banho, seguido de café com leite e pão com manteiga à beira do fogão a lenha. E nada aquecia, ali. O nó na garganta e o olhar não enganavam, e a cada visita médica se esperava o milagre da cura que nenhum jaleco branco mais era capaz de dar.

Ser médico, nestes casos, talvez seja um dos maiores desafios. A ele é requerida a força do retorno do olhar terno, que não tem o direito de desfazer a expectativa, nem mesmo de construir o que não mais se pode esperar. Que desafio! O que se há de fazer? Não há. Eles, juntos, aquele doce casal aguardou pelo amanhecer.

Da grande janela o sol apontou, o café da manhã chegou, e aquele seria mais um dia de mãos dadas sem cheiro de lenha, mas com ar do talco doce que ela trazia em seu cheiro de abraço quente. E anunciou-se o próximo plantão.

Camila Vasconcelos (Advogada em Direito Médico e Professora em Bioética FMB-UFBA)

*Texto originalmente publicado no Jornal Tribuna da Bahia, impresso, em 04 de agosto de 2018, pg. 11.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *