Geni engravidou, emudeceu e parou

Geni não sabia o motivo, mas a todo tempo jogavam-lhe pedras. Ninguém nunca havia lhe explicado bem, mas seu corpo não era seu. Tudo o que decidia era, em verdade, pretensão dos cegos e dos retirantes. Todos senhores de si. Nem mesmo quando desejava, os desejos eram seus. A morte nunca havia sido a sua pretensão, mas parecia lhe cair bem. Estava grávida. Uma pena.

Durante sua adolescência Geni pensou que este seria um lindo momento. Mas ele havia sumido. Ela, sozinha, nada tinha na capital, local para onde havia se deslocado por conta de uma boa oportunidade de emprego. Na roça nem mesmo vacas havia para que pudesse se candidatar à vaga de ajudante para tirar leite no curral ou tratar dos bichos. Era somente seca para todo o lado. Ela havia viajado, no começo do ano, ingênua, para morar na casa da patroa, na capital.

Tudo parecia difícil no começo, mas encantador. Havia seu quarto, seu canto, sua luz, seu banheiro, seu chuveiro, seu guarda-roupa, sua TV. Ela, antes, nada possuía. Nem a si. Se apaixonou e, como qualquer “pessoa humana”, acreditou em outra pessoa, que não sabia que seria desumana. Geni se apaixonou. Morava no quarto que era seu. E passou a acreditar ser possível também ter um corpo, seu.

Se enganou. Não imaginava engravidar naquele momento. Em verdade, pouca sabia sobre sexo. E, ainda que soubesse, possuía seu raciocínio maculado pela paixão. Acreditou. Não conseguiu fazer uso da contracepção e, sinceramente, acreditou estar vivendo o sonho do lindo amor. Ele dizia que, se ela realmente o amava, jamais iria desconfiar de seu corpo a ponto de precisar fazer uso de preservativos. Preservar do quê, dizia. Promessas de amor. Um relacionamento de pouca autonomia, tipicamente abusivo sob a forma de um “eu te amo”, portanto “faça o que eu te peço, Inha”.

Genizinha. Ela, sempre receosa, acreditou silenciosamente que nada aconteceria. Orava e pedia que assim fosse. Torcia com todo seu desejo. Passou, contudo, a sentir cansaço. Enjoos. Sua patroa passou a cobrar “mais responsabilidade e pontualidade com os deveres”. O susto foi lhe tomando, o medo se fez presente e… Será? Ela foi à farmácia, procurou o teste mais barato. Geni engravidou.

Sua patroa jamais aceitaria e sua família jamais a receberia de volta desta maneira. Geni era acuada na roça e na capital. Respirou, confiou, encontrou com seu querido amor e contou. Com ternura sorriu e esperou que seu amor dissesse “está tudo bem”, “vamos ficar juntos e formar nossa família”. Ouviu, contudo, que o problema era apenas seu, e que não era obrigado a aceitar o que não queria. Seria ele a mesma pessoa? Sim, agora com “quereres” desvelados.

O mundo rodou. Em silêncio, Geni voltou. Seria verdade? Ninguém poderia ajudar. Ela mal havia feito amizades ali. Não havia nem mesmo qualquer condição de faltar um dia ao trabalho para realizar cuidadosamente o procedimento de interrupção da gestação com um médico e continuar a vida com a lembrança daquela experiência infeliz. Nada. Ela soube de um medicamento. Constrangida foi em busca. Não deu certo. Novamente constrangida, voltou a pedir ajuda ao seu sonhado lindo amor. Ele nem sequer a encontrou. Restavam-lhe objetos pontiagudos, orando para que, em silêncio, chorasse sua dor sozinha, à noite, no quarto.

Assim fez. Tremia… Quanta dor. Doía de todo o lado, no peito e no útero. Doía a solidão, doía o coração partido, doía o medo de que seu choro contido fosse ouvido, doía o corpo que não era seu. A dor era sua, mas, para a lei, não lhe cabia decidir, com segurança e saúde, sobre seu corpo. Ninguém ajudaria, nem antes, nem depois. Geni ficou ali, quieta, sofrendo freudianamente seu mal-estar na civilização. Na manhã seguinte ela não acordou cedo para trabalhar na cozinha. Emudeceu. Não havia mais Geni. Sua dor parou, seu coração falhou e o amor cedeu à mágoa do nada.

Camila Vasconcelos (Advogada em Direito Médico e Professora de Bioética FMB-UFBA)

*Texto originalmente publicado no Jornal Tribuna da Bahia, impresso, pg. 11, em 29 de agosto de 2018.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *