A balada de Adam Henry – Breves reflexões sobre a recusa terapêutica

Já dizia o autor Ian Mcewan que “há muito em comum entre a boa literatura e as sentenças judiciais”. De fato, a ficção e a vida real guardam muito mais semelhanças do que podemos imaginar. Publicada em 2014, a obra “A balada de Adam Henry”[1], do famoso romancista britânico Ian Mcewan retrata de forma cuidadosa e instigante um dilema ético-moral que com frequência tem sido objeto de discussões no campo do Direito e da Medicina: a recusa terapêutica à transfusão de sangue por parte de pacientes Testemunhas de Jeová.

A história ambientada na cidade de Londres retrata a vida de uma juíza da vara de família que ao mesmo tempo em que vive uma grave crise em seu casamento tem de decidir sobre um difícil caso que vem atraindo atenção da mídia, envolvendo um Hospital e um jovem adolescente diagnosticado com leucemia, cuja família era testemunha de jeová e, assim como o menino, não autorizava a transfusão de sangue.

A obra oferece um campo fértil de estudo não apenas para Bioética, como também para o Direito e a Medicina, uma vez que levanta questionamentos como: Qual é o papel do Direito? Qual a função da justiça? Quais são os limites da atuação de um juiz? Qual é peso da opinião médica? Qual a força e o limite das crenças?

Diante de tantas dúvidas e questionamentos, há de se fazer alguns esclarecimentos, o primeiro deles é acerca da normatização da recusa terapêutica. A despeito de para muitas pessoas parecer uma conduta incompreensível, inaceitável ou até mesmo ilegal, trata-se de uma prática configurada como “direito do paciente”, permitida no ordenamento jurídico brasileiro e eticamente normatizada pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução 2.232/2019[2]. De acordo com os artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Resolução citada, a recusa terapêutica tem a seguinte disciplina:

“Art.  1º A recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão.

Art.  2º É assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente.

Parágrafo único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.

Art.  3º Em situações de risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros.

Art. 4º Em  caso  de  discordância  insuperável  entre  o  médico  e  o  representante  legal, assistente  legal  ou  familiares  do  paciente  menor  ou  incapaz  quanto  à  terapêutica proposta,  o  médico  deve  comunicar  o  fato  às  autoridades  competentes  (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.”

Observa-se, portanto, que apesar de autorizada, a recusa terapêutica encontra limites em situações de risco relevante à saúde e, especialmente, quando envolve pacientes menores de idade. E foi exatamente em razão deste limite que a história de Adam Henry chegou às mãos da Juíza Fiona Maye. Longe de ser uma narrativa rasa e superficial, Ian Macewan consegue abordar todas essas questões de forma respeitosa e profunda, conduzindo o leitor a se colocar no lugar dos personagens, levando-o a compreender que o debate vai muito além de uma simples resposta de sim ou não, legal ou ilegal.

O romancista britânico descortina a dualidade simplista que muitas vezes toma conta deste debate e evidencia os desafios – éticos, morais e pessoais – que a personagem principal, a juíza Fiona Maye, enfrenta para proferir sua sentença. De um lado ela compreende as razões do Hospital e do corpo médico em querer preservar a vida do jovem rapaz e, de outro, ela também compreende o direito de crença e as razões do menino e de sua família em recusar o tratamento, por enxergá-lo como algo que tornaria o Adam “indigno” ou “impuro” perante os “olhos de Deus” – o velho dilema da tutela de bens jurídicos de suposto igual valor.

A fim de avaliar melhor as condições de decisão de Adam Henry, Fiona vai ao encontro do jovem no Hospital – atitude rara de se ver por parte dos magistrados – , onde através de um instigante diálogo consegue compreender melhor os motivos que levavam o jovem adolescente a negar um tratamento que teria condições de salvar a sua vida. A conversa se desenrola por longas páginas e gira em torno do que o jovem adolescente interpreta das passagens bíblicas e do que seus pais lhe ensinaram, suscitando, assim, grandes reflexões sobre as noções de certo e errado, “melhor interesse do menor”, liberdade religiosa, consciência, capacidade e bem-estar.

O romancista britânico consegue fazer do enredo uma verdadeira aula de bioética uma vez que não busca respostas prontas, mas provoca o leitor a assumir uma postura crítico-reflexiva sobre o dilema em questão. O diálogo entre Fiona e Henry no hospital é uma verdadeira valsa, em alguns trechos acredita-se que ela vai confirmar a decisão tomada pelo adolescente, em outros tem-se quase a certeza que ela vai confrontá-lo. Tal mistério é brilhantemente sanado no momento considerado o clímax da obra, a sentença proferida pela Juíza – digna de transcrição:

“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer crime de agressão. A está próximo da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são. O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem […]. É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus 17 anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas. […] Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância esse esteve exposto sem interrupção a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante, para assim se transformar num mártir de sua fé. […] Este Tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no além, que, de qualquer forma, certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela poesia, por sua recém descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa, por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente […].”

Ora, longe de querer fazer juízo de valor sobre a assertividade – ou não – da decisão tomada na obra ficcional, há de se enaltecer a maestria do romancista britânico em  narrar de forma profunda e poética o que se desenrolou na vida de Adam Henry depois da sentença  – o que aqui não será esmiuçado a fim de resguardar o ineditismo do desfecho da obra.

De todo modo, vale ressaltar que a discussão deste tema é de grande relevância não só para a comunidade médica mas também para a comunidade jurídica, uma vez que é muito importante – e necessário –  ter profissionais capacitados e devidamente informados sobre todas as complexidades que envolvem o tema, entre elas: o respeito à autonomia do paciente e seus limites, a liberdade religiosa, os direitos e deveres dos médicos nas perspectivas ético-jurídicas, os direitos de personalidade, entre outros assuntos conexos que surgem nos casos semelhantes que chegam aos Tribunais, como o devido cumprimento do dever de informar.

Há de se ressaltar que a “A balada de Adam Henry” exemplifica perfeitamente a importância da aplicação dos princípios bioéticos, bem como a necessidade de tanto profissionais da Medicina quanto do Direito terem uma visão multidisciplinar e integral do ser humano, de modo que os conflitos da vida humana envolvendo questões de saúde não sejam resolvidos isoladamente, a partir de uma compreensão meramente biologicista ou simplesmente legalista.

Por fim, vale ressaltar, a título de informação, que apesar de atualmente vigente, em dezembro de 2019 o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 642)[3] em face da Resolução CFM nº 2.232/19. Ainda pendente de julgamento, alega, o partido, que “da forma como redigida, a norma permite a imposição de tratamento forçado aos pacientes, com especial impacto sobre grupos populacionais vulneráveis, como crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e em sofrimento mental e idosos” – o que denota que ainda há muito que ser discutido sobre o tema, sendo a obra de Ian Mcewan um bom ponto de partida.

 

Catherine Ferreira Mainart
Pós-Graduanda em Direito Médico, da Saúde e Bioética –
Faculdade Baiana de Direito

Camila Vasconcelos
Advogada em Direito Médico e Bioética,
Professora da Faculdade de Medicina UFBA e
Doutora em Bioética pela Universidade de Brasília – UNB.

 

 

[1] McEWAN, Ian. A Balada de Adam Henry. Tradução: Jorio Dauster. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

[2] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.232/2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 Acesso em 26 out 2020.

[3] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=434205&ori=1

 

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