1,2,3… Gravando: É permitido ao paciente gravar consulta médica?

Investigadores criam app que grava e transcreve consultas médicas - Atualidade - SAPO LifestyleSe você vai em consultas médicas com uma certa frequência, com certeza já deve ter notado que a relação médico-paciente vem adquirindo uma nova configuração. Contudo, há de se observar que apesar de a Medicina ter passado por diversas transformações em razão dos avanços científico-tecnológicos, os elementos essenciais para uma boa relação médico-paciente permaneceram intocáveis, a exemplo da pessoalidade, do diálogo e da empatia. A confiança e o respeito mútuo tornaram-se, neste novo contexto, ainda mais exigíveis, sobretudo diante das aceleradas interações sociais, que tendem a despersonificar os sujeitos e homogeneizar suas singularidades. Assim, a fim de manter ou restabelecer a pessoalidade das relações e possibilitar o acolhimento do paciente de forma humanizada, o elemento confiança – também chamada de fidúcia – se destaca, e assume um papel importantíssimo nas interações intersubjetivas no campo da saúde.

De acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis, a palavra confiança pode ser definida como um “sentimento de segurança e respeito em relação às pessoas com quem se mantém relações”[1]. Lamentavelmente, tendo em vista o fenômeno da judicialização da medicina, observa-se que tal elemento tem se tornado cada vez mais escasso nas relações estabelecidas em alguns consultórios médicos, dando lugar ao surgimento de um sentimento de desconfiança. Como consequência, tem-se visto alguns conflitos advindos da relação médico-paciente, estes que desaguam nos Tribunais de Justiça e até mesmo nos Conselhos Regionais de Medicina, denotando, assim, um claro processo de fragilização da relação médico-paciente, quando não implementados os elementos essenciais acima descritos.

Envolto neste contexto de conflituosidade, tem-se levantado o debate sobre a prática que alguns pacientes vêm adotando, de utilizar meios de registro audiovisual nas consultas, sem a colheita anterior de autorização do médico. Neste sentido, muitos consideram que, em um eventual processo, judicial ou ético-disciplinar, tal registro possa servir como prova de suas alegações. Tal prática suscita uma profunda discussão ético-jurídica, pois além de envolver direitos de personalidade, constitucionalmente assegurados, envolve também uma discussão sobre os limites e alcances dos direitos do paciente e do médico. Para tanto, reflitamos: é possível, aos pacientes, realizarem a gravação de consultas médicas sem autorização?

De antemão, registremos que há um entendimento divergente entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a jurisprudência de alguns Tribunais. No âmbito ético-disciplinar, conforme Despacho Sejur n.º 386/2016, o CFM entende que as consultas somente podem ser gravadas com a autorização do médico, podendo, este, caso não se sinta confortável, recusar o atendimento, não se tratando de situação de urgência e emergência.[2] Registra-se que nesses casos de recusa, não há que se falar em ilícito ético, tendo em vista que esta decisão se encontra no âmbito da autonomia médica, conforme respaldado pelo artigo 36 § 1° do Código de Ética Médica, quando afirma:

“Art. 36, § 1°: Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.” [3]

Ainda, no que toca o sigilo médico, ressaltou, o CFM, que sendo o paciente o próprio titular das informações a serem resguardadas, não há que se falar em quebra de segredo. Isso porque, muitas vezes o paciente solicita a gravação para escuta própria posterior, a fim de melhor compreender as informações passadas no momento da consulta. – o que é inclusive incentivado para uma boa adesão terapêutica. Contudo, para tanto, o CFM considera que há necessidade do consentimento do médico para gravação.

De forma diversa, diversos Tribunais de Justiça têm entendido que não há ilicitude na gravação sem consentimento, ou seja, que não há proibição legal quando a gravação é feita sem a autorização do médico. Sustenta-se, com esta tese, de que levada aos autos de um processo, a eventual gravação feita pelo paciente não seria considerada prova ilícita. Vejamos recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ):

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL E CONSTITUCIONAL. DECISÃO QUE REJEITA ALEGAÇÃO DE ILICITUDE DE PROVA. TAXATIVIDADE MITIGADA DO ROL DO ART. 1.015 DO CPC. GRAVAÇÃO AMBIENTAL DE CONVERSA ENTRE MÉDICO E PACIENTE REALIZADA POR ESTE PARA FAZER PROVA EM FACE DAQUELE. POSSIBILIDADE. ACERTO DA DECISÃO. […] O mérito deste recurso consiste na avaliação da licitude da prova obtida através de captação ambiental de diálogo entre paciente e médico durante sua consulta. Afirmou o médico agravante que a gravação ambiental da conversa privada, sob sigilo de conversação, seria ilícita, pois não teve o conhecimento da captação de seus comentários. Apesar da tese, tem-se que a prova não se revela ilícita, pois o sigilo entre paciente e médico é constituído sempre em favor do paciente, e não o contrário. Assim, pretendendo o paciente realizar a gravação da conversa sigilosa que teve com seu médico com o intuito de fazer prova de violação de dever funcional por parte daquele, a prova deve ser reputada lícita, inexistindo impedimento legal, pois o sigilo do conteúdo da conversa serve apenas para proteger a privacidade do próprio paciente, o qual pode renunciá-la para fazer prova em juízo contra o médico. RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.”[4]

Para melhor compreensão da ementa acima citada, é importante pontuar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVI, afirma que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.[5] Ainda, que de acordo com o artigo 157 do  Código de Processo Penal[6], provas ilícitas são aquelas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

Neste sentido, conforme entendimento do Tribunal citado acima, não há nenhuma norma legal que proíba ou tipifique como crime a gravação feita sem o consentimento de um dos interlocutores, no caso em questão, do médico.  Nos termos do artigo 10 da Lei nº 9.296/96[7]. o que a legislação proíbe, em verdade, é a interceptação. Vejamos:

“Art. 10.  Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática,
promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Art. 10-A. Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos
para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida:
§ 1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores.”

Com isso, há de se ressaltar a distinção entre três institutos importantes no âmbito do Direito: interceptação, escuta e gravação. Caracteriza-se interceptação quando uma terceira pessoa tem acesso ao diálogo de outros interlocutores, mas sem conhecimento destes. Ressalte-se que essa é a modalidade expressamente vedada em lei, sendo autorizada apenas com autorização judicial – afinal, tem-se aqui uma clara violação de sigilo, intimidade e privacidade.

Por sua vez, escuta é a modalidade em que uma terceira pessoa tem acesso a comunicação de outros interlocutores, contudo, com a prévia autorização de um deles. Já a gravação, modalidade ora discutida, caracteriza-se quando um dos interlocutores grava o próprio diálogo com outro interlocutor, independente do consentimento deste.

De todo o modo, é possível refletirmos que o ato de gravar a consulta sem a autorização do médico, em si, não é ilícito, contudo, é uma clara violação à boa-fé e aos princípios que regem a relação médico-paciente. Ressalte-se, ainda, que apesar de não ser ilegal, o uso indevido da gravação pode configurar violação aos direitos de personalidade do médico, caso esta seja veiculada em redes sociais ou em outros meios de comunicação – o que é passível de ação indenizatória, até mesmo sem prova de prejuízo, conforme Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8].

É plenamente compreensível o temor que tal situação pode trazer para a prática médica, afinal, o médico pode se sentir ameaçado ao saber que a qualquer momento sua fala poderá estar sendo gravada, podendo, inclusive, ser essa gravação utilizada em seu desfavor nos Tribunais. Acontece que tal desconforto pode ser mitigado com dois elementos essenciais à relação médico-paciente, já mencionados: o diálogo e a confiança. Uma boa comunicação pode efetivamente estabelecer um ambiente confortável para ambos os sujeitos, considerando que “o encontro na relação médico-paciente implica em uma interação comunicativa”[9].

Por isso, recomenda-se que, caso o paciente deseje gravar a consulta, este deve sempre perguntar ao médico se ele se sente confortável. Deste modo, havendo aceitação, é possível que a gravação seja feita de forma pacífica e consensual.

Conforme Parecer emitido na Consulta nº 122.508/18[10] feita ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) em junho de 2018, para permitir uma gravação em sintonia com boa prática e ética médica, o médico pode adotar medidas preventivas e protetivas, quais sejam: a) solicitar que o paciente assine um “Termo de confidencialidade/preservação de imagem e voz”, em que conste as consequências que o uso indevido da gravação pode acarretar; b) registrar em prontuário que o paciente está gravando a consulta; c) em caso de recusa do paciente em assinar o termo, poderá o médico pedir a alguém que assine como testemunha no termo, informando que o paciente gravou a consulta e se recusou a assinar (podendo ser, esta testemunha, profissional de saúde ou funcionário administrativo), fazendo também o registro desta recusa em prontuário.

Portanto, o fato de não constituir ilícito não significa que a gravação da consulta, sem a concordância do médico, seja salutar à relação intersubjetiva que se estabelece nos consultórios. Há de se reconhecer que a tecnologia e os dispositivos de telecomunicação são grandes aliados nos processos terapêuticos e, como bem prescreve o parecer do CFM, estes não devem ser entendidos como uma agressão à relação médico-paciente, desde que seja respeitada a  autonomia dos sujeitos, e que seu uso seja feito de maneira adequada, respeitosa, transparente e consensual.

Catherine Ferreira Mainart
Pós-Graduanda em Direito Médico, da Saúde e Bioética –
Faculdade Baiana de Direito

Camila Vasconcelos
Advogada em Direito Médico e Bioética,
Professora da Faculdade de Medicina UFBA e
Doutora em Bioética pela Universidade de Brasília – UNB.

 

[1] Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis. Confiança. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?id=n1eG Acesso em 30 set 2020.

[2]  Brasil. Conselho Federal de Medicina. DESPACHO SEJUR N.º 386/2016. (Aprovado em Reunião de Diretoria 13/07/2016). Expediente nº 5665/2016. Assunto: Gravação de consulta médica por paciente. Caso concreto. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/despachos/BR/2016/386_2016.pdf Acesso em 30 set 2020.

[3] Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.217/2018. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 Acesso em 25 set 2020.

[4] Brasil. TJ-RJ – AI: 00682051820198190000, Relator: Des(a). WILSON DO NASCIMENTO REIS, Data de Julgamento: 30/01/2020, VIGÉSIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL

[5] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em  25 set 2020.

[6] Brasil. Código de Processo Penal. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 25 set 2020.

[7] Brasil. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, do art. 5º da Constituição Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm Acesso em 30 set 2020.

[8] Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.

[9] Vasconcelos, Camila. Direito Médico e Bioética: história e judicialização da relação médico-paciente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[10] Brasil. Conselho Federal de Medicina. Consulta nº 122.508/18. Assunto: Gravação de consultas médicas. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=15369&tipo=PARECER&orgao=%20Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=122508&situacao=&data=19-06-2018 Acesso em 30 set 2020.

3 Comments

  1. Thiago Attié

    Espetacular como sempre Dras. Em especial minha professora na pós realizada pela Universidade Corporativa da ANADEM, Porf. Camila Vasconcelos, da qual tanto me orgulho de ter ouvido presencialmente seus ensinamentos. Muito bom. Tema atual. Parabéns as duas.

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