Breves sugestões para a Resolução 2.232/2019

A Resolução 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina parece ter nascido com o propósito nobre e primeiro de revogar, não a destempo, a Resolução CFM n. 1.021/80, cuja interpretação situava a recusa por motivo religioso à transfusão sanguínea como tentativa de suicídio. Essa última normativa técnica fora objeto de ADPF n. 618/19, movida pela Procuradoria Geral da República, no sentido da inconstitucionalidade do entendimento então veiculado, que compelia a transfusão, afastando o constrangimento ilegal, ao fundamento do permissivo penal do art. 146, § 3.º, como medida necessária a impedir suicídio. Ocorre que o paciente testemunha de Jeová que recusa a transfusão não deseja morrer, tanto que procurou assistência. Ele refuta, entretanto, submeter-se a determinada terapêutica, que lhe soa absolutamente incompatível com seus valores religiosos, também constitucionalmente salvaguardados. A questão se dirige, então, aos limites à recusa terapêutica e à obrigatoriedade de submeter-se a tratamento, quando existe risco à vida.

A Resolução 2.232, todavia, ao tentar redimir-se, data venia, terminou gerando críticas ainda mais amplas, ao generalizar, sem esclarecer de fato, a atuação contra a vontade do paciente a outros âmbitos, numa época em que se prima, justamente, pela ampliação da autonomia e ponderação respeitosa de valores fundamentais. Em face disso, ela foi objeto da ADPF n. 642/19 e da Ação Civil Pública nº 5021263-50.2019.4.03.6100/SP, que suspendeu parcialmente a eficácia, entre outros, do artigo 5.º, § 2.º, e art. 10, que limitam a liberdade respectiva da gestante e do paciente em geral na recusa terapêutica, sobretudo em relação ao final de vida, em aparente choque, inclusive, dos artigos 11 a 13, com disciplinas já consagradas e grandes conquistas ético-legais, como as Resoluções CFM n. 1.805/06 e 1.995/12.

De um modo geral, a Resolução em comento já se mostrava frágil, ao se haver proposto a concentrar duas questões – quais fossem: a recusa terapêutica do paciente e a objeção de consciência do médico – em um só documento, o que não costuma mostrar-se de bom alvitre numa norma de esclarecimento, como as Resoluções. Tal circunstância recorda a elaboração das Resoluções n. 1.805/2006 e 1.826/2007, que tratam respectivamente da ortotanásia e da morte encefálica, e que foram cogitadas inicialmente numa resolução única, o que, ponderou-se à época, ensejaria mais confusão, ao sugerir que seriam temas necessariamente correlatos. À época, o CFM concluiu, muito sensatamente, que Resoluções “dois em um” não costumam gerar bons frutos.

À Resolução n. 2.232/2019, portanto, sugerir-se-ia, primeiramente, cingir-se à questão da recusa terapêutica, em consonância com as normas já havidas, e às eventuais situações em que ela não seria isso possível – o que per si já requer discussão específica, inclusive quanto à caracterização, algo questionável, de um abuso de direito. Elaborar-se-ia, então, outra Resolução para os casos de objeção de consciência do médico (especificamente artigos 7 a 10, esses dois particularmente confusos, ao mesclarem os dois pontos, tanto que objetos do crivo judicial), com as respectivas causas em que não pode ser esta admitida: basicamente a situação em que não houver outro profissional apto a fazer a assistência a que o paciente tem direito.

Veja-se que o único ponto em comum com a questão originária da recusa a transfusão sanguínea, e que poderia ter motivado a conjunção, seria a objeção do médico testemunha de Jeová em proceder a transfusão em paciente com indicação da medida e que a deseje, quando inexiste outro profissional que o possa fazer – situação bem distinta, portanto, da recusa terapêutica pelo paciente. Outra situação de objeção de consciência do profissional tradicionalmente lembrada como inadmitida é a do médico que se recuse a realizar aborto legal, quando inexiste na localidade outro facultativo que possa prover à paciente a conduta a que faz jus e deseja, nos casos admitidos pelo ordenamento jurídico. Também é situação bem distinta da opção da gestante quanto a forma de parto, que tem sido, quiçá, um dos pontos mais polêmicos da novel Resolução.

Do exposto, portanto, a primeira sugestão a ser feita seria a de cindir a Resolução, concentrando-se uma na questão da recusa do paciente e seus limites, e apartando dela o que se refere à objeção de consciência do médico – a ser objeto de normativa própria, porquanto aspecto de fato distinto e dirigido a outro sujeito. Com isso, permitir-se-ia melhor orientar médicos e pacientes na interpretação do que já consta do ordenamento jurídico, eis que é esse o objetivo das Resoluções que tais, não se tratando de norma concessiva de direitos próprios ou que vede o que as leis não proíbam, inovando onde não lhes é dado constitucionalmente fazer. Uma segunda sugestão seria a de harmonizar a norma com as disposições já existentes e oriundas do próprio Conselho, em relação ao final de vida.

Comentários sobre o teor dos dispositivos no particular, seus limites e cotejo com o ordenamento ficam para um outro escrito. Não nos parecem críticas vazias, mas, de efeito, sugestões construtivas. Assim como já se revira, com sabedoria, o Conselho, em outras ocasiões, não se vislumbraria dano em rever-se aqui, no intuito de aclarar e aprimorar os vínculos em saúde.

 

Maria Elisa Villas-Bôas
Doutora em Direito Público, Professora Associada UFBA,
Defensora Pública Federal e Médica Pediatra

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