A primeira ou a última?

Inverno, beira-mar, o sol apontava, brando, e a brisa tocava, macia, o rosto dos que ali escutavam, com atenção, o silêncio da manhã. Ele, grande psiquiatra e pensador humanístico das questões da vida, concentrado em seu quebra-cabeças de mil peças, radiante, embora com feição recrudescida pela preocupação momentânea em completar o céu de sua imagem, interrompe o silêncio, pausadamente, e direciona, a mim, uma pergunta astuta:

– Minha cara, qual a peça mais importante: a primeira ou a última?

Eis que, com a pressa de quem responde a partir dos primeiros sentimentos que, legitimamente, brotam, disse:

– A última, porque traz a satisfação de completude e sensação de tarefa cumprida!

Não sabia eu, contudo, que havia feito uma escolha irresponsável tendo em vista a dádiva da vida e a lindeza de seus riquíssimos caminhos, aprendizados e buscas…

– A última?! Você escolheu a morte. A última é quando acaba, e não há mais nada a fazer. Já a primeira é o começo de tudo, de um longo caminho que demora a passar.

De fato! Ô mania de buscar o término das atividades, de caçar as conclusões, de desejar os bem-fazeres prontos. Não sabendo eu que a graça está justamente no durante! Hei de aprender que a graça está em não se saber “como” e “quando” estará pronto o quebra-cabeças da vida. Aos pouquinhos, fui observando pequenos gestos e detalhes daquele instante rico.

Pude perceber que ninguém sabe se uma peça irá se perder no meio do caminho, causando um eterno sentimento de ausência. Porque as peças perdidas são mesmo as lacunas da vida, as falhas, os buracos que, por mais que queiramos, nunca serão verdadeiramente tamponados e isso não é, de todo, ruim. Ao menos continua-se em busca de algo, ou providencia-se.

Não se sabe, também, se todas as peças de um céu serão encaixadas nos exatos tons de azul, ou de branco, quando presentes as nuvens leves. Mas talvez não importe, já que pareceriam apenas pontos próprios de uma chuva que logo passa, é percebida, e sai do lugar. Não se sabe se, enquanto se aprecia a imagem que é montada, o maior tempo será preenchido com a maravilha do sorriso diante da peça encontrada, ou com a sisudez da busca pela peça querida, escondida entre centenas, como quem pirraça.

– A peça tem o tempo dela – diz, ele, novamente, quebrando o silêncio que se havia refeito.

– Quando some? E aquela que procurava, onde estava?

– Sim. Estava por aqui, entre as outras. Esqueci dela, por um tempo, e ela apareceu. Há momentos em que não adianta. Então é melhor fazer outra coisa. Cada parte é encontrada quando quer. Não adianta insistir.

De fato. E, mais uma vez, ele tinha razão. São “partes” de um “todo” que, apesar disso, talvez se pensem como um “todo” em si mesmas, e recriem o seu próprio tempo, espaço e forma. É a autonomia das partes, que aparece quando se reconhecem indispensáveis. E, de fato, são. Porque suas ausências fazem muita falta.

Por coincidência li, há pouco, um livro singelo, curto e complexo, que trata da mesma questão: “A parte que falta encontra o grande O”, de Shel Silverstein. No entanto, na história, a parte que falta não fazia a mínima ideia que tinha a capacidade de reconhecer-se autônoma, inteira, capaz de arredondar suas pontas e passar a rolar sem que, para isso, precisasse estar à espera de alguém que a levasse a algum lugar.

Vejo que, de algum modo, isso se aprende, com o tempo. O tempo da parte. A primeira ou a última parte. Porque ambas são indispensáveis, prontas a começar ou a terminar o que se montou e remontou em uma vida.

Camila Vasconcelos
(Advogada em Direito Médico e Professora de Bioética FMB-UFBA)

 

 

 

 

*Texto originalmente publicado no Jornal Tribuna da Bahia, impresso, em 13 de julho de 2019, pg. 10.

2 Comments

  1. Tiago Moisés Nunes Cerqueira Rita Nunes Cerqueira

    Lindo texto Camila Vasconcelos. Me Permitiu na leitura aumentar a reflexão a cerca da: importância do meu “tempo” quanto já gastei e o que me resta. Quanto ainda me resta para concluir o quebra cabeça.

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