Responsabilidade Médica Ético-Legal*

Ao discorrer sobre a teoria da responsabilidade e suas primeiras distinções, Hans Jonas afirma que o poder causal é uma condição para ocorrência da responsabilidade. O autor reforça este espectro de que apenas dá causa a um dano aquele a quem a obrigação era direcionada, de maneira que o sujeito “é responsável por suas consequências e responderá por elas, se for o caso.” (1) Por isso, ainda que pareça curiosa esta percepção, para ele “só pode agir irresponsavelmente quem assume responsabilidades” (1).

Quanto à perspectiva deontológica, o Código de Ética Médica (2) abarca ambos os sentidos, tanto ressaltando o agir responsável como conduta do médico que atua em conformidade com a ética da profissão – portanto correto na respeitabilidade aos princípios dispostos naquele texto -, quanto designando um capítulo específico sobre a responsabilidade profissional como consequência de um dever descumprido que requer a conseguinte estipulação de penalidade.

De tal modo, em seu primeiro capítulo, intitulado “princípios fundamentais” o Código de Ética Médica traz: “XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.” (2) E no terceiro capítulo, intitulado “responsabilidade profissional”, aduz que “É vedado ao médico: art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único: A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.” (2)

Esse contexto de certa forma se relaciona com a máxima hipocrática do primum non nocere, ou, em outras palavras, o primeiro dever do médico é não causar dano ou mal ao paciente. Esse princípio foi traduzido pela bioética principialista de Beauchamp e Childress como “Princípio da Não Maleficência” (3).

Em termos processuais ético-jurídicos, é importante observar que a busca pela responsabilização do profissional médico pode ocorrer em duas esferas: a judiciária e a administrativa. A primeira se divide em penal, em que se analisará possível conduta ilícita enquadrável em um comportamento tipificado em lei penal, e cível, em que se discutirá um possível descumprimento de obrigação anteriormente estabelecida, capaz de ensejar o dever sucessivo de indenizar material ou moralmente.

A segunda se divide em disciplinar (4), em um processo administrativo que tramitará junto a uma instituição pública ou privada em que o profissional de medicina atue, objetivando a averiguação de descumprimento de normativas internas, e em ético-profissional, em caso de denúncia realizada junto ao Conselho Regional de Medicina (CRM), que poderá ser proposta por pessoa interessada (paciente, familiar ou instituição privada), pelo próprio conselho – hipótese em que será intitulada de “ex officio”, ou remetida por instituição pública devido a existência de convênio ou por força de lei. (5)

Camila Vasconcelos
Advogada em Direito Médico, Professora da Faculdade de Medicina UFBA e
Doutora em Bioética pela Universidade de Brasília – UNB

 

(1) Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 165.

(2) Conselho Federal de Medicina do Brasil. Resolução CFM nº 2.217/2018. Aprova o Código de Ética Médica. Publicada no D.O.U. de 01 de novembro de 2018, Seção I, p.179. Modificada pela Resolução CFM nº 2.222/2018. Disponível em: < https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217>. Acesso em: 06 ago 2019.

(3) Beauchamp TL, Childress JF. Principles of Biomedical ethics. New York: Oxford University Press, 2013.

(4) Um processo administrativo poderá também ser aberto no local de prestação do serviço médico, seja ele público ou privado, quando a direção do estabelecimento assim entender necessário para apuração de eventual problema interno. Neste caso, transcorrerá um processo administrativo disciplinar interno, diverso do administrativo ético-profissional, que correrá perante o conselho de classe.

(5) A respeito desta remessa vale ressaltar, a título de exemplo, que no Estado da Bahia no Ministério Público há o Núcleo de Apuração de Crimes Relativos a Erros na Área de Saúde, que pode ser acionado por “cidadão que acredita ter sido vítima de erro cometido por profissionais da área de saúde”, servindo para apoio jurídico e instauração de procedimento investigatório capaz de ensejar a abertura de processo penal. Tendo em vista o estabelecimento de um convênio entre este órgão e o Conselho Regional de Medicina do mesmo estado, as denúncias realizadas ao órgão ministerial são remetidas institucionalmente, hipótese em que, após análise interna do Conselho, poderá ser aberta sindicância e, sendo o caso, posterior abertura de Processo Ético-Profissional.

 

*Trecho retirado de Tese original: VASCONCELOS, Camila. Judicialização da Medicina no Brasil: uma análise crítico-propositiva de um problema persistente sob a ótica da Bioética de Intervenção. 2017. 155 f. Tese (Doutorado em Bioética) Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

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