Nota de chegada: mudanças na disciplina do final de vida no país

A Profa. Camila me convidou a escrever alguns textos curtos para seu blog (afinal estamos em época célere e telegráfica, de informações rápidas e objetivas), abordando conteúdos do universo do Direito Médico, Bioética e Biodireito, sem entrar aqui na discussão terminológica dessa última expressão, que acaba sendo pragmaticamente útil por vezes. Pensei com o que começar e achei pertinente, também a partir de conversas nossas, começar, a uma, pelo que ainda me é mais confortável falar, que é sobre final de vida, objeto de meus estudos desde o Mestrado; a duas, com uma autocrítica, algo que nunca se deve deixar de fazer.

Já se passou mais de uma década desde que publiquei minha dissertação, sob a forma de livro, intitulados ambos “Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida”. Foram estudos desenvolvidos numa época em que pouco ainda se pesquisava e produzia sobre o tema no país. Falar de morte soava mórbido, e a praxe era viver como se fôramos imortais. Como digo sempre: vai que a Morte se esquecia de mim… De lá para cá, muita coisa mudou nessa seara, e que bom que foi assim. Descobrimo-nos mortais e começamos a pensar mais no assunto, senão para nós, mas para nossos entes queridos. Se a morte é inexorável, como torná-la mais amena e novamente mais humana, no caminho inverso da tecnicização do último século?

O livro continua valendo, na maioria dos aspectos. Em outros, contudo, já mister ajustar. Como num guia de leitura, costumo orientar os que o leem hoje, para as mudanças havidas nesse período, o que ora passo a destacar, na referida autocrítica (ou sintética atualização) e como destaque das principais mudanças havidas no tema nos últimos anos, que não chegaram a ser tantas, mas já abrem portas para revelar um novo pensar de mundo.

Inicialmente, é de se atentar para a atualização normativa, que se concentra especialmente nos documentos produzidos pelo Conselho Federal de Medicina e na mudança paradigmática que eles evocaram no país, tanto entre profissionais – que, ao contrário da crença difundida, não são árduos defensores da eutanásia, mas, ao revés, temem-na, quiçá mais que os leigos – mas também no relacionamento profissional-paciente-família acerca do tema, num benfazejo projeto de resgate ao vínculo.

Assinalo, nesse ponto, primeiramente, a Resolução CFM n. 1805/2006, de cujas discussões tivemos o prazer, com Lara Torreão, de participar, e de cuja redação final só discordo de uma vírgula, sob o ponto de vista jurídico. Inovadora e emblemática, ao reconhecer (e não instituir, importante que se diferencie) a licitude da ortotanásia, algo que já defendíamos, a Resolução foi objeto de discussão jurídica acalorada, que culminou com o reconhecimento de sua constitucionalidade, abrindo portas para uma compreensão muito mais precisa sobre o tema. Interessante ler a sentença da Justiça Federal do Distrito Federal que o reconheceu, em 2010.

Ela trouxe, ainda, uma modificação que eu faria no livro, não somente, por óbvio, para acrescentar sua substancial colaboração, mas também porque revela uma posição bem mais inclusiva, que é a decisão médica compartilhada. Ainda concordo, naturalmente, que a análise da terminalidade, da indicação ou não indicação técnica das medidas terapêuticas é do profissional, mas gostaria de ter dito melhor que a análise da futilidade é mais do que a só indicação técnica. Essa análise e decisão, bem assim a possibilidade de recusa terapêutica na terminalidade, há de ser compartilhada, priorizada a manifestação do principal interessado, quando se ingressa numa zona gris de beneficência.

A Resolução foi precisa nesse ponto. Tal protagonismo do paciente, respeitadas as limitações éticas e legais, também ficou claro nos dois Códigos de Ética Médica que sucederam a publicação da obra (outra atualização relevante), escrita ainda sob a égide do CEM/88, mas que se viu convergir com as codificações de 2009 e de 2019, ambas na mesma linha da referida Resolução n. 1805/2006, agora já com bem menor resistência em sua defesa à não distanásia.

Nessa mesma seara se viu, em 2012, a Resolução CFM n. 1995, trazendo a discussão da ortotanásia para um momento de previsão da terminalidade, sob a forma de um norte inédito às diretrizes antecipadas. Mais recentemente, outras normativas do Conselho também ratificaram sua posição contrária simultaneamente à eutanásia, mas também à distanásia, em favor de uma morte mais natural, a seu tempo, menos tecnicizada e o mais humanizada possível.

Outra mudança trazida pelas evoluções do regramento técnico-profissional do CFM no tocante ao final de vida, em parceria com Decreto Executivo na mesma linha, disse respeito aos critérios e procedimentos para o diagnóstico da morte encefálica, que também foi objeto de discussão na época de minha pesquisa, por envolver uma distinção necessária quanto às condutas de final de vida. Após vinte anos, a tradicional Resolução CFM n. 1480, que disciplinava a matéria desde 1997, deu lugar à Resolução CFM n. 2173/2017, a título de atualização da disciplina técnica, conforme delegado pela Lei 9434/97. Dez anos antes, a Resolução CFM n. 1826/2007, desdobrada da original proposta de redação da Resolução n. 1805 suprarreferida, em feliz e necessária distinção, já sanara as dúvidas, mormente profissionais, que se diga, acerca da licitude da suspensão de suporte artificial dos parâmetros biológicos em caso de diagnóstico de morte encefálica de não doadores de órgãos e tecidos. É tema que podemos desenvolver mais em outro texto.

Ainda, sob o ponto de vista legislativo, mais lento na maturação social das demandas, novo Projeto de Código Penal veio somar-se aos já referidos no livro, como havendo, desde 1989, discutido o tema das condutas relativas ao final de vida, inclusive a proposta de perdão judicial para a eutanásia, conforme o parâmetro tradicional da legislação uruguaia (a abordagem internacional da matéria também é outro ponto que comportou mudanças, naturalmente, pelas novas normas no âmbito do direito comparado, mais até do que nas normativas internacionais de direitos humanos propriamente ditas). O projeto atual, ainda em discussão desde 2012, já passou por diversas formulações, tendendo a caminhar, ao que parece, na mesma direção do quanto já vem sendo adotado pelo Conselho Federal de Medicina, em suas normas, e na mesma linha do que desde aquela época defendíamos, como mais condizente com as demandas culturais pátrias, a nosso sentir.

Cabe destacar, outrossim, sob o ponto de vista judicial, com importante repercussão legislativa, a modificação trazida pela antológica ADPF 54, julgada em definitivo em 2012, ao cuidar da possibilidade lícita de abortamento (ou antecipação terapêutica de parto, como preferiram os propositores da ação) no caso de feto anencefálico, em discutível equiparação à disciplina da morte encefálica na fundamentação, mas conclusão final ética e constitucionalmente sustentável e relevante. Nesse meio tempo, a Resolução CFM n. 1752/2004 foi corretamente revogada, por partir de premissa legalmente equivocada para disciplinar a doação de órgãos e anencefalia, e foi elaborada a Resolução n. 1989/2012 para disciplinar o suporte ao procedimento de antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico.

Alerta-se, por fim, para os novos temas correlatos que ingressaram na esfera da discussão do final de vida com mais força nos últimos anos, como os Cuidados Paliativos, as próprias Diretivas Antecipadas e a abordagem multidisciplinar do Luto.  Mas esses ficam para uma escrita seguinte.

Aproveito a nota, por fim, para uma homenagem, ao recordar a partida recente do Pe. Leo Pessini, um dos primeiros nomes a tratar do tema no Brasil, em suas múltiplas obras sobre Bioética, final de vida (como as obras “Eutanásia” e “Distanásia”, dirigidas para tais temas) e humanização, numa visão pioneira no país, ampla e sensível acerca do ser humano, em sua despedida da vida.

Prometo que na próxima serei mais técnica e, se conseguir, mais sucinta. É bom estar aqui. Parabéns pela iniciativa, cara amiga.

 

Maria Elisa Villas-Bôas
Doutora em Direito Público, Professora Associada UFBA,
Defensora Pública Federal e Médica Pediatra

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